O Companheiro, de Sidónio Muralha e de Irene Sá

Domingos Lobo

O Companheiro fala-nos do antes e depois de Abril de 1974, dos tempos injustos e cruéis do fascismo e também dos homens bons e justos

No ano em que se comemora o centenário do nascimento do poeta e ficcionista Sidónio Muralha (n. Lisboa, 1920 – m. Curitiba, 1982), um dos nomes cimeiros da 1.ª geração do neo-realismo literário português, convém registarmos que grande parte do nosso universo editorial ignorou essa efeméride, publicando ou republicando alguns títulos da sua vasta obra, há muito esgotada ou fora do mercado.

Em contra ciclo com o panorama geral, a editora Página a Página deu à estampaum belo texto para a infância, O Companheiro, género para o qual o autor de Passagem de Nível1 deu reconhecido e relevante contributo, sendo nesse âmbito considerado «um precursor da literatura portuguesa para crianças».2

Com a sua obra poética e o grosso da sua produção para a infância publicada nos anos terríveis do fascismo, Sidónio Muralha, como de resto os seus camaradas das letras, não teve, no domínio da sua divulgação, vida fácil. Mesmo a literatura para a infância, que ingenuamente julgávamos fora dos olhares censórios do regime, era perseguida e vigiada como se de um panfleto subversivo se tratasse. Diz-nos Violante F. Magalhães: «Durante o Estado Novo, as obras de literatura infantil não só, e como sucedia com as demais, eram objecto da Censura, como estavam sujeitas a recomendações e a circuitos de divulgação específicos, controlados por organismos próximos do poder político. Consequentemente, os escritores neo-realistas enfrentavam dificuldades redobradas em encontrar um editor disposto a publicá-los.»3

Mas os autores ligados ao neo-realismo, e outros com opções ideoestéticas diversas, não deixaram de ir à liça: eram gente intimorata e persistente, difíceis de dobrar. Mesmo no cerco constante que a Censura exercia sobre os seus textos, por mais pueris que fossem, autores como Ilse Losa, Sidónio Muralha, Irene Lisboa, Alves Redol, Sophia de Mello Breyner ou Matilde Rosa Araújo, «foram então responsáveis pela publicação de textos que, considerando a assinalável qualidade que os caracteriza, se constituíram no húmus da literatura portuguesa para a infância.

O Companheiro, de Sidónio Muralha, que conta com a complementaridade visual, e cúmplice, das magníficas ilustrações de Irene Sá, fala-nos do antes e depois de Abril de 1974; dos tempos injustos e cruéis do fascismo mas, igualmente, dos homens bons e justos, que lutavam para que os meninos pobres tivessem acesso aos livros, à escola, à saúde, e queriam a liberdade de todos os homens, e mais: que as mãos pretas, brancas e amarelas, se unissem aliadas e fraternas. Ao invés, quem mandava no seu país não queria a liberdade para todos os homens, sequer se interessava saber se, nesse país, havia comida em todas as mesas, livros, escolas ou hospitais. O que o dono desse país gostava era de gaiolas, de grades e prisões. E do compungido silêncio imposto por decreto e vigiado por homens comprados pelo senhor fascista, chamados Pides.

Estas e outras histórias de chapéus verdes, fatos de homens justos, democratas e espantalhos que não sabem assustar, narradas por Sidónio Muralha numa escrita carregada de sinais subtis e de uma eficaz linguagem poética, em didactismo suave e sem artificialismos paternalistas, fazem deste livro, e nos tempos que vivemos, um modelar objecto cultural para os mais jovens, do maior interesse pedagógico, histórico e humano. A história de 50 anos portugueses contada de forma sensível, divertida e justa.

Nesta efeméride faz também sentido recordar do poeta o Soneto Imperfeito da Caminhada Perfeita: Já não há mordaças, nem ameaças, nem algemas/que possam perturbar a nossa caminhada,/em que os poetas são os próprios versos dos poemas/e onde cada poema é uma bandeira desfraldada.// Ninguém fala em parar ou regressar/ninguém teme as mordaças ou algemas/- O braço que bater há-de cansar/E os poetas são os próprios versos dos poemas.// Versos brandos... ninguém mos peça agora./Eu já não me pertenço. Sou a hora./E não há mordaças, nem ameaças, nem algemas// que possam perturbar a nossa caminhada,/onde cada poema é uma bandeira desfraldada/e os poetas são os próprios versos dos poemas.5

 
O Companheiro, de Sidónio Muralha e Irene Sá – Edição Página a Página

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1Passagem de Nível, de Sidónio Muralha, livro de poemas publicado a 7 de Julho de 1942, na colecção “Novo Cancioneiro”

2Violante F. Magalhães, Um Pucarinho de Esperança, in Nova Síntese, A Poesia do Neo-Realismo, Lisboa, 2010, edição Colibri, p.129

3Idem

4idem, p.130

5Sídónio Muralha, Passagem de Nível, Coimbra, 1942

 



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