A inoxidável luz da esperança

Manuel Augusto Araújo

Durante o fascismo, o acesso à educação era negado à esmagadora maioria da população

Muitas foram as portas que Abril abriu para a esperança do pulsar de uma nova vida que resgatasse Portugal da miséria, do obscurantismo em que quarenta e oito anos de ditadura fascista-salazarista o tinha mergulhado com um longo rol de violências que afectaram inúmeras vidas de democratas que a ela se opunham, com largo destaque para os comunistas, as primeiras e principais vítimas de uma luta em que nunca desistiram enfrentando torturas, prisões, mesmo a morte.

Foram muitas as portas de esperança que se abriram ultrapassando as manobras contra-revolucionárias das mais variegadas espécies e com os mais diversificados protagonistas que desde a primeira hora procuraram subverter a Revolução do 25 de Abril. Portas que se escancararam com tal fragor que mesmo depois do 25 de Novembro e de mais de 40 anos de governos política de direita continuam a deixar passar a luz da esperança de uma política patriótica e de esquerda.

Uma dessas portas foi a da educação num país onde o analfabetismo era uma larga mancha negra, o acesso à educação negado à esmagadora maioria da população. Com o 25 de Abril toda a fragilidade das estruturas educacionais ficou evidenciada quando em 1975, 28 mil jovens estudantes se candidatam às universidades, o dobro do número de candidatos registados no ano anterior. Obviamente que, com as inúmeras frentes de trabalho abertas em prol do progresso de Portugal, era impossível no espaço de um ano ter criado estruturas que possibilitassem absorver essa massa estudantil. A solução encontrada foi criar o Serviço Cívico Estudantil que integrava os estudantes no esforço de reconstrução do País, pondo as escolas em contacto com a realidade do país com o objectivo de enriquecer conteúdos de ensino, esclerosados nas sombrias décadas fascistas.

Foi traçado o Plano Trabalho e Cultura por uma equipa supervisionada por Michel Giacometti, financiada pelo Estado e pela Fundação Gulbenkian. A escolha de Michel Giacometti fundava-se no conhecimento que tinha adquirido desde que se instalou no nosso país, em finais de 1959, iniciando um trabalho de recolha da música tradicional portuguesa que o fez percorrer todo o território nacional de que resultaria em colaboração com Fernando Lopes-Graça a Antologia da Música Regional Portuguesa, uma vasta colecção de instrumentos de trabalho e outro património imaterial e material em risco de extinção ou adulteração pelo folclorismo bacoco com que a ditadura pretendia subverter a cultura popular.

O Plano Trabalho e Cultura era marcadamente revolucionário de acordo com os tempos heróicos do Verão de 75. Adaptava ao contexto português o Travail et Culture, um dos principais projectos de educação popular do pós II Guerra Mundial em França e nas suas colónias do norte de África.

Centenas de jovens estudantes, em idade pré-universitária, mergulharam no Portugal profundo, de Trás-os-Montes ao Algarve, ao encontro de comunidades rurais e piscatórias, promovendo a alfabetização, a animação cultural, a formação de associações e cooperativas que apoiavam a instalação de melhores condições de habitabilidade e sanidade, enquanto paralelamente continuavam o trabalho de recolha etnográfica. Um trabalho revolucionário duramente atacado pelas forças mais reaccionárias, sobretudo no norte do país, em que se distinguiam os padres incentivados pelo tenebroso Cónego Melo, um terrorista de extrema-direita.

É o espólio do Serviço Cívico, milhares de fichas dactiloscritas, fotos, objetos etnográficos e instrumentos agrícolas que agora foram organizados na exposição 45 anos – Plano de Trabalho Cultura e Serviço Cívico Estudantil que pode, deve, ser visitada em Setúbal, no Museu do Trabalho Michel Giacometti, que alberga uma colecção única e de raríssima qualidade recolhida por esse etnólogo corso apaixonado por Portugal e pela cultura popular portuguesa.

 

Museu do Trabalho Michel Giacometti, até 26 de Setembro, de segunda a sexta-feira das 09h00 às 19h00 e aos sábados das 14h00 às 19h00.




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