O elefante na sala

Correia da Fonseca

Foi mais um «Prós e Contras», desta vez consagrado ao tema das doenças mentais que emergem da normal vida quotidiana, locais de trabalho incluídos, tendo a emissão o título específico de «A epidemia oculta». O assunto terá sido induzido pela recente fase de confinamento domiciliário e consequentes efeitos nas cabeças de cidadãos subitamente privados de relacionamentos habituais que para muitos seriam factor de equilíbrio afectivo e mental. E a dada altura alguém falou de um «elefante na sala» que seria não apenas um dado incontornável na questão, mas também um factor fundamental para o adequado entendimento do quadro laboral da nossa sociedade e, consequentemente, da questão que ali se abordava. Depressa ficou claro que o «elefante» é a estrutura capitalista do mercado e ficou implícito que ao assinalar-se a sua corpulenta presença se abria um caminho para o exame dos problemas maiores que o trabalho enfrenta. É óbvio que se tornava assim mais que natural a presença no programa de quem pelo menos de algum modo representasse os trabalhadores, mas essa representação possível e necessária não existiu. Aconteceu até que entre os diversos temas abordados se contou o trabalho a distância, gerador do neologismo «teletrabalho», mas nem esta inovação abriu esse caminho. Embora o cruzamento, se não miscigenação, entre ambiente doméstico e trabalho apontasse para uma necessária presença sindical.

Uma emissão enfadonha

A escolha do título «A epidemia oculta» para esta emissão do «Prós e Contras» apontava aliás para uma abordagem não excessivamente melindrosa em termos sociopolíticos, antes pelo contrário, e a denúncia da presença do elefante na sala onde todos nós nos encontramos ou desencontramos foi uma excepção a que ninguém terá querido regressar. Mas essa escolha por um trajecto sem riscos de implicações porventura não desejadas reduziu radicalmente o interesse do programa. De qualquer modo, tornou-se claro que o rumo escolhido pelo «Prós e Contras» não apontava para aspectos que podiam tornar-se perturbantes, tais como a questão de saber do relacionamento presumivelmente difícil entre teletrabalho a partir do domicílio e quotidiano doméstico: é certo que a pandemia obrigou e obriga a muitas soluções espinhosas, mas esse facto não dissipa inconvenientes nem elimina embaraços. Da verificação desse condicionamento até ao diagnóstico de uma «epidemia oculta» erigida em título irá decerto uma distância que o «P. e C.» decidiu percorrer: nem será absurdo admitir, pelo menos como hipótese, que desta vez o programa possa ter cedido à tentação tipicamente televisiva de dramatizar o tema para lhe conferir pelo menos a possibilidade de um maior impacto junto do público. Essa eventual intenção não eliminou o resultado de uma emissão enfadonha, o que de modo nenhum é característica do programa. Talvez o dado decisivo da questão resida na escassa evidência de uma «epidemia» naturalmente nada óbvia porque «oculta», e aqui torna-se possível pensar que o tema tenha sido esticado para fornecer um título aliciante ao programa. Passemos. O «Prós e Contras» há-de ter melhores dias.




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