A tecnologia deve aliviar a exploração e não ser instrumento da sua intensificação
DIREITOS «Não está em causa o aproveitamento das novas tecnologias ao serviço do desenvolvimento e da melhoria das condições de trabalho e de vida, o que está em causa é, como muitas outras vezes se verificou, o seu aproveitamento pelo grande capital para criar ilusões e fragilizar os trabalhadores», afirmou Jerónimo de Sousa na audição Teletrabalho: ilusões; fragilização dos trabalhadores, garantia de direitos.
O Partido não abandonará a batalha do esclarecimento
Na iniciativa realizada dia 9, moderada por João Frazão, da Comissão Política do Comité Central, e na qual participaram sete oradores (ver caixa), o Secretário-geral do PCP abriu os trabalhos a contextualizar a oportunidade da abordagem da temática e a afastar eventuais leituras distorcidas da posição dos comunistas portugueses sobre a matéria.
Assim, lembrando que o «desenvolvimento científico e tecnológico é uma realidade com incidência em todos os planos da vida e da sociedade, e também no trabalho», deixou imediatamente claro que o progresso material e do conhecimento não pode ser colocado à margem ou acima da luta de classes, isto é, «ele pode servir os trabalhadores ou, no quadro da sua apropriação pelo capital, ser posto ao serviço do seu objectivo de agravamento da exploração e de ataque aos direitos».
Jerónimo de Sousa sublinhou, igualmente, que o PCP não ignora que «a crescente automação do processo produtivo, que alia inteligência artificial e computação a organização do trabalho, leva, em muitas situações, à separação física em diversas das unidades de produção de componentes, fora do mesmo espaço e até do mesmo país, dissociadas da unidade de produção que finaliza um determinado produto». E sabe, também, que «a informática e o processo de digitalização de muitas actividades desmaterializaram a base de informação para o trabalho e abriram a possibilidade de uma separação física, presencial, do local a partir do qual se opera essa informação».
«É neste contexto que é referido o teletrabalho», prosseguiu o dirigente comunista, que partindo para a diferenciação de realidades que se misturam quando se fala de teletrabalho – «trabalho à distância em instalações da empresa; trabalho à distância em espaço comum a várias empresas e trabalho a partir da residência dos trabalhadores, que é, afinal, o que pretende ser promovido e endeusado» –, reiterou que, para o PCP «não está em causa o aproveitamento das novas tecnologias ao serviço do desenvolvimento e da melhoria das condições de trabalho e de vida».
«O que está em causa», precisou, «é, como muitas outras vezes se verificou, o aproveitamento pelos mesmos de sempre, o grande capital, para criar ilusões e fragilizar os trabalhadores».
Assim não
Ora, «este período da epidemia favoreceu uma mais larga utilização de formas de teletrabalho a partir de casa», constatou Jerónimo de Sousa, que a propósito denunciou o aproveitamento da conjuntura para a «generalização acrítica» daquela prática e a promoção de «vantagens omitindo as consequências negativas».
O Secretário-geral do Partido reiterou ser compreensível «a consideração individual do teletrabalho como solução aceitável, nomeadamente pela poupança de tempo em transportes, melhor articulação da vida pessoal, confrontação menos directa com a intervenção e imposição de chefias, distanciamento de ambientes de trabalho menos favoráveis». Mas insistiu que «o que está em causa é muito mais do que isso», questionando, em seguida: «o que verdadeiramente quer o grande capital? A que é necessário estar atento? O que é preciso evitar?».
Na resposta, focou questões fundamentais que o PCP considera estarem em cima da mesa, designadamente «o agravamento da exploração com intensificação do trabalho, na duração e ritmo, com uma maior pressão para alargamento do período de trabalho, para a disponibilidade permanente e a dificuldade acrescida de definir, controlar e fiscalizar os tempos de trabalho», bem como «a redução de custos das empresas com a transferência para o trabalhador de custos de instalações, água, electricidade» e «a pressão para o uso de instrumentos de trabalho do trabalhador ao serviço da empresa».
Nas pretensões do grande capital, está, neste quadro, «impor um salto qualitativo na devassa na vida dos trabalhadores», designadamente pela «instalação e funcionamento de câmaras e a sua utilização por controlo remoto, a pretexto do controlo do tempo de trabalho, da garantia de não visualização do trabalho ou do acesso a informações por parte de pessoas estranhas ao empregador».
«Só que esta invocação para fiscalizar o ambiente de trabalho em casa, significa mesmo o controlo do ambiente familiar, e as tentativas de devassa não se ficam por aqui», alertou, chamando à atenção que se observam já «exigências de acesso à residência do trabalhador por parte de empresas».
«Querem fazer o caminho para acabar com componentes da remuneração dos trabalhadores, no imediato ou a prazo, nomeadamente o subsídio de refeição, de transportes e outros de incidência familiar; têm o propósito de se desresponsabilizar das questões de segurança e saúde no trabalho e da protecção de acidentes de trabalho, estabelecendo a confusão entre o que é esfera privada ou de trabalho em condições de teletrabalho no domicílio, para fugir às responsabilidades que as empresas têm que assumir, num quadro em que se potencia o desenvolvimento e agravamento de doenças profissionais resultantes do aumento do isolamento e da não diferenciação do ambiente do trabalho e da residência», alertou o Secretário-geral do PCP, para quem, «a tudo isto, «acresce ainda o objectivo da separação física e do maior isolamento dos trabalhadores uns dos outros, em seu prejuízo».
Os trabalhadores ficam, daquele modo, privados da «partilha de experiências e conhecimentos que favorecem o seu desenvolvimento profissional e pessoal», e fragilizados na «construção de laços de sociabilização e de afirmação de espaços de solidariedade colectiva, com impactos negativos no esclarecimento, na unidade, na organização e na luta dos trabalhadores».
Inaceitável
No debate que se seguiu à intervenção inaugural do Secretário-geral do PCP, Hugo Dionísio, jurista do Gabinete de Estudos da CGTP-IN, adiantou dados recentes que têm sido usados por aqueles que querem generalizar o teletrabalho sem direitos. Todavia, só invocam as vantagens apontadas, nunca referindo que, no mesmo estudo, se alerta que maior individualização acarreta maiores ritmos de trabalho e aumento da jornada, com o trabalhador a sentir-se constrangido a mostrar serviço e a usar o tempo de deslocação como trabalho efectivo prestado. Aliás, salientou, um terço dos inquiridos não teve dúvidas em considerar que, com o teletrabalho sem limites definidos, despendem mais tempo laboral, com mais custos para o trabalhador.
Hugo Dioníso considerou, assim, que «teletrabalho só se conferir mais direitos e se for reversível a qualquer momento».
Diana Ferreira, deputada do PCP na Assembleia da República, concordou, em seguida, com muitos dos problemas levantados anteriormente e revelou que o Grupo Parlamentar do Partido tem vindo a acumular relatos e queixas. Nesse sentido, assegurou que «não nos coibiremos de intervir com propostas que reforcem os direitos dos trabalhadores», dando como objectivos, entre outros, a obrigação de um acordo escrito entre patrão e trabalhador e o direito à reversão a todo o momento; o respeito pelos horários de trabalho normais, o direito ao pagamento do trabalho suplementar e de todas as componentes pecuniárias previstas na contratação colectiva; a definição das responsabilidades das empresas em assegurar todas as condições necessárias às funções desempenhadas e todos os custos acrescidos; o direito à organização sindical, à privacidade; a criação de uma estrutura específica da ACT para intervir nesta área e o aumento das horas de formação paga pela empresa.
O professor universitário Rogério Reis, por seu lado, concentrou críticas aos que procuram generalizar o ensino à distância e o correspondente teletrabalho. O tele-ensino foi uma necessidade transitória que se revelou um modelo mais pobre, desde logo porque ignora que nem todos têm as mesmas condições de acesso e assimilação, mas, igualmente, porque carecendo de mais apoio, sobrecarrega pais e docentes. Isto para além de privar os alunos da socialização e da participação na gestão democrática das escolas, questão sentida também pelo corpo docente.
Dividir para oprimir
Um elemento que também sobressaiu nas intervenções, foi a pressão colocada sobre a possibilidade de organização dos trabalhadores. Depois de o jovem Rafael Almeida, ex-prestador de serviços numa empresa de aluguer de mão-de-obra, ter testemunhado que viveu todos os problemas referidos e mais a ausência de formação ou possibilidade disso neste contexto, Miguel Costa, considerou que os benefícios apresentados sobre o trabalho à distância em casa são, na maior parte dos casos, uma fábula. Criticando o discurso montado para vender o teletrabalho e admitindo a dificuldade que as organizações representativas dos trabalhadores enfrentam para o desmontar, realçou precisamente a ofensiva contra a capaçidade de reivindicação e acção colectivas.
Semelhante preocupação manifestou Luís Filipe, trabalhador da seguradora AGEAS e membro do SINAPSA. Esta empresa tem, há mais de 15 anos, por opção e acordo dos próprios, vários trabalhadores a laborarem a partir de casa, com um contrato específico. Por isso, o trabalho à distância a propósito da pandemia não foi uma novidade.
Já Elisabete Gonçalves, da Federação de Sindicatos da Função Pública, lembrou que o programa do actual Governo já previa a aposta no teletrabalho na Administração Pública (AP), tendo a crise sanitária acelerado um processo que se está a revelar abrupto e desrespeitador dos direitos dos trabalhadores – porque não foram ouvidos na definição de direitos e deveres nem estes estão claramente balizados; porque estão a ser informados por correio electrónico da redução dos postos físicos, com, entre outros factores, prejuízos na resposta e acesso aos serviços públicos; porque a maioria dos trabalhadores da AP tem expressado que não pretende ficar em casa, mas o distanciamento físico do local de trabalho coloca dificuldades acrescidas na sua resposta, o que se irá agravar se este rumo não for travado.
Vamos lutar
A terminar, João Frazão, que foi pautando a audição com comentários e perguntas colocadas através dos canais disponíveis nas redes sociais, frisou que «o capital lançou mão a uma imensa operação política e ideológica» visando «intensificar a exploração» e «manietar os trabalhadores na sua capacidade de se organizarem, de se mobilizarem e lutar», sendo o teletrabalho apresentado «como moderno, amigo do ambiente e da conciliação da vida familiar e profissional». Contudo, tal «não passa de uma ilusão que se desvanecerá» à medida que se forem impondo as suas consequências nos direitos, rendimentos e saúde física e psicológica dos trabalhadores, que detalhou.
Por mais do que uma vez, João Frazão também enfatizou que, nesta matéria, não partimos do zero. No Código do Trabalho existem normas a este respeito, mas a concluir reiterou todas as propostas do PCP, entretanto avançadas por Diana Ferreira, e garantiu que o Partido continuará a bater-se «em defesa dos direitos dos trabalhadores», os quais estarão tanto mais perto de alcançar quanto em torno deles «se levantar um grande movimento de luta».
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«Teletrabalho só se conferir mais direitos e for reversível a qualquer momento».
Hugo Dionísio
«Combateremos todas as iniciativas legislativas que coloquem em causa os interesses dos trabalhadores».
Diana Ferreira
O ensino à distância e o correspondente teletrabalho, aprofunda desigualdades sociais. Não pode, portanto, tornar-se normal porque subverte a escola pública e a sua missão».
Rogério Reis
Professor universitário
«A formação em teletrabalho é inexistente».
Rafael Almeida
«O teletrabalho como está a ser vendido é uma fábula».
Miguel Costa
«A AGEAS está a construir edifícios novos em Lisboa e no Porto e não vai haver lugar para toda a gente».
Luís Filipe
«Os trabalhadores estão a ser informados por correio electrónico da redução dos postos de trabalho físicos».
Elisabete Gonçalves