Cantar a Liberdade, cantar em liberdade
Foi importante que, em 25 de Abril, tivesse soado nas janelas a Grândola, Vila Morena
Várias são as ferramentas das lutas. Mas, mais do que a natureza das alfaias, o que determina o avanço dos destinos é mesmo essa grandeza a que chamamos organização – homens e mulheres colectivamente empenhados na análise e na participação, decidindo o que fazer, e quando, nos momentos essenciais da comprida caminhada. O Capital só teme a luta organizada, ou menor seria a gritaria com que, nos dias de há bem pouco, se procurou calar a emergência da celebração da Liberdade e dos direitos dos trabalhadores.
Reproduzindo velhas receitas, quiseram fazer explodir o medo no meio da multidão, desta vez sob a forma de falso imperativo sanitário. Foi por isso importante que, em 25 de Abril de 2020, tivesse soado nas janelas deste país a Grândola, Vila Morena, em vozes de muitas idades ou na gravação difundida pelos que se acharam desafinados. Ficou dos primeiros a entoação das palavras, e dos segundos o som inicial de passos na gravilha, belíssima metáfora da caminhada havida e por haver. E foi fundamental que nas, praças de Portugal, tivessem soado a Internacional e os hinos (da Intersindical e de Portugal) nas vozes dispostas em desenho de parada, belíssima demonstração da determinação essencial.
Nas lutas emancipadoras, a eficácia das ferramentas não se esgota no manejo. É o caso das canções, matéria-prima da Humanidade mesma e seu produto também, capazes de permanecer protagonistas da História (que é condão de toda a Arte). Mas a maior qualidade do canto revolucionário é mesmo a escolha do berço. Canta-se no protesto o canto que é das ceifas e das galerias mineiras, rima-se a palavra de ordem como se rima a lenga-lenga e o trava-línguas, numa sobreposição de tempos que não prescinde da reinvenção estética. Por isso é que Grândola, Vila Morena sabe a Cante e é de todo o lado, por isso é que as palavras conspirativas de Aleixo, Ary e Sophia são luzes de agora com sabor a velhos cantos de jogral.
Diz-se «quem canta seus males espanta» mas, tal dizendo, muito se encurta o alcance do cantar. Porque o canto que nos interessa é o de reunir, de esclarecer, de encantar, de tomar conta das vozes que se querem muitas no acerto destas vontades. Porque os males que nestes cantares se querem espantar hão-de ser o da submissão, da imobilidade, da fatalidade, da crença no perpetuar de uma (des)ordem que já estremeceu na Paris de 1789, na Petrogrado de 1917, na Madrid de 1931, na Havana de 1959, na Berlim de 1945, na Santiago do Chile de 1970, na Lisboa de 1974. Percebe-se, por isso, que o susto surgido de tão grandes espantamentos permaneça tão avesso às palavras e às melodias que, nos tempos todos, foram moldura das acções, a tal ferramenta das lutas.
As canções resistem tanto mais ao passar do tempo quanto mais ligadas estiverem aos grandes movimentos da emancipação. Enquanto poucos terão herdado a sonoridade das canções em que o regime fascista se embalava, há milhares que sabem de cor o Acordai de José Gomes Ferreira e Lopes-Graça, A Morte Saiu à Rua de José Afonso, Tejo Que Levas as Águas, do Manuel da Fonseca e do Adriano, a Pedra Filosofal de Gedeão e Manuel Freire, o Avante de Luís Cília, o Hino de Caxias, entre tantos outros cantos. E também a Carvalhesa, ressuscitada da sepultura do último gaiteiro transmontano que a tocou na sua aldeia para as vozes e as rodas-de-dançar que a celebram, ano após ano, na Festa do Avante!.
Não se estranhe, pois, que aos cantos se atirem silenciamentos, e que às razões por que respondem lhes arremessem sondagens, comentadores, promessas de vingança e até, podendo ser, um tribunal igual ao de A Excepção e a Regra (de Brecht). Acontece que nos cantos, como nas sementes, nunca se esvai a memória do lugar em que germinam. Às vezes aceitam soar nas janelas que dão para a rua, o pouco tempo que se permitem ser canteiro ao abrigo da tempestade, como em 25 de Abril de 2020. Mas, passada a nuvem maior, é às ruas que as canções prometem regressar, por ser da História que o canto da Liberdade não pode atender aos temores dos que a querem oprimir. Por serem canções de luta, aquela que continua.