- Nº 2420 (2020/04/16)

Cultura confrontada com erosão e extinção reclama apoios de emergência e perspectiva

PCP

AUDIÇÃO A Cultura era já o «parente pobre», mas a crise sanitária agravou todos os défices. Se não forem tomadas medidas imediatas e iniciado o caminho para uma nova política cultural, o sector confronta-se com a erosão e, em muitos casos, a extinção, denunciaram profissionais e criadores numa audição promovida anteontem pelo PCP.

A iniciativa decorreu à distância, como mandam as regras impostas para o combate ao surto epidémico, mas nem por isso deixou de evidenciar uma estreita ligação do PCP com a realidade da Cultura, remetida invariavelmente para o papel de «parente pobre» por sucessivos governo nas últimas décadas, e, por isso, em risco de soçobrar.

É que se antes trabalhadores e instituições acumulavam carências em resultado da falta ou da insuficiência de apoios, do sector se encontrar empurrado para a mercantilização, fruto da desregulação das relações laborais e da ausência de uma estratégia assente na Cultura como bem a que todos devem poder aceder, na actual conjuntura de paragem total, o cenário é o de erosão acelerada e a perspectiva é a da extinção, se nada for feito.

Esta foi uma conclusão da audição que decorreu durante quase duas horas, conduzida pela deputada do PCP na Assembleia da República, Ana Mesquita, e na qual testemunharam oito profissionais e criadores.

À eleita comunista coube abrir a auscultação intitulada «As respostas inadiáveis no sector da cultura face ao surto epidémico», deixando desde logo claro que, à imagem do que sucede noutras áreas, «se é preciso combater o coronavírus, é inaceitável que, em nome desse combate se possa liquidar direitos, cortar salários, fazer despedimentos, impor a lei da selva».

Procurando fazer um esquiço mais específico, Ana Mesquita lembrou que a Cultura «foi a primeira área a parar», sucedendo-se «em catadupa» os «cancelamentos» e «adiamentos».

«Muitas instituições e entidades foram forçadas a encerrar portas», reafirmou, acusando, depois, o Governo de «falta de orientação clara» quanto a «apoios», o que, prosseguiu Ana Mesquita, deixou «milhares de trabalhadores e entidades da Cultura sem uma resposta imediata e relativamente ao seu futuro».

A realidade é a de trabalhadores e criadores confrontados com «falta de meios de subsistência», pelo que a deputada apelou a que os participantes dessem voz às «consequências dramáticas» que enfrentam com o objectivo de afinar as soluções e propostas concretas que as possam debelar.

«Quando falamos de soluções, falamos de ferramentas para resolver efectivamente os problemas, e não de presentes envenenados para tentar aprofundar ainda mais a clivagem entre as gentes da Cultura, gerar mais desigualdades, mais injustiças, e fomentar uma política de lambe-botismo, perfeitamente indigna para quem faz da arte e da cultura o seu trabalho», realçou ainda Ana Mesquita.

E já sabemos que o milhão [de euros] previsto [para o TV Fest, entretanto cancelado], não vai chegar para acudir a toda a gente», notou.

Outra música seria

Realçando, por outro lado, que o PCP tem recebido inúmeros relatos e detalhando até alguns aspectos dos testemunhos chegados ao Partido, Ana Mesquita recordou que, com carácter imediato «o PCP propôs, e foi rejeitada por PS, PSD, CDS, CH e IL, a criação de um Fundo de Apoio Social de Emergência para a Cultura».

«Apoios directos, não concursais, de natureza social e sem a exigência de uma qualquer contrapartida de um futuro evento presencial ou uma “perninha” num evento online ou qualquer coisa do género», destinados «aos trabalhadores das artes e da cultura que ficaram numa situação profundamente fragilizada», precisou, antes de relembrar «a tremenda precariedade que é marca da vida na Cultura».

«É, mas não tem de ser. Nem pode ser. Há outro caminho!», reiterou.

O Partido defendeu, igualmente, apoios a que «as estruturas e entidades que, reunindo condições para se candidatarem aos normais apoios públicos (por exemplo, da DGArtes ou do Instituto do Cinema e do Audiovisual), possam recorrer, independentemente de terem tido, ou não, apoios através do Ministério da Cultura». Contudo, «chegados à fase da aritmética, os dez deputados do PCP não chegaram para aprovar» uma proposta que bem se pode dizer, a ser concretizada, seria outra música para o sector mesmo no corrente contexto de emergência.

Situação crítica

Passando a palavra aos que em linha se encontravam, o primeiro a intervir foi Rui Galveias, músico profissional e dirigente do CENA-STE, a quem coube dar conta dos dados apurados pelo Sindicato para um sector que passou de «uma realidade com as carências conhecidas» para uma outra, abrupta, em que «bateu contra uma parede e parou».

Da informação recolhida – um questionário a que responderam mais de 1300 profissionais e entidades –, resulta clara «a perda quase total das suas remunerações» e, por conseguinte, a incapacidade, quando não imediata a breve trecho, de «honrarem os seus compromissos».

«Podemos fechar salas de espectáculos mas não podemos fechar a vida das pessoas», acrescentou Rui Galveias, que denunciando que da reunião no Ministério da Cultura sobressaiu a falta de respostas e o desconhecimento do sector, sublinhou que, sem ajuda para sobreviver e mais tarde retomar, quem já vive na precariedade determinada quer pela sazonalidade quer por vínculos laborais instáveis, «está a ser empurrado para a pobreza», para o abandono da actividade.

Desconhecimento da realidade concreta por parte da tutela lamentou igualmente Isa Craveiro, do Teatrão, companhia de Coimbra, que nesse sentido considerou a necessidade de aproveitar o momento de urgência para proceder «ao mapeamento do tecido cultural no País». É que, sustentou, para se responder à altura é preciso que os apoios considerem a diversidade de características das instituições e dos profissionais, bem como da actividade concreta que desenvolvem e das fórmulas em que tem assentado a sua sustentação.

Também músico profissional, Tiago Santos realçou a «enorme precariedade» em que subsistem a esmagadora maioria dos trabalhadores e criadores. «As vidas têm sido suportadas no sonho de viver da música, mas no dia-a-dia não têm grande retribuição», abandono que se arrasta e está na base das «dívidas acumuladas».

Explicando melhor este último aspecto, Tiago Santos lembrou que muitos artistas e trabalhadores, a braços com a sazonalidade e as baixas remunerações, fizeram acordos com a Segurança Social e a Autoridade Tributária. Outros, pelas mesmas razões, abrem e encerram actividade para que o saldo devedor ao Estado não cresça continuamente. Ora, do que se conhece, nestes casos «ficam de fora dos apoios anunciados», os quais, a rondar os 430 euros, «havendo família, rendas, não chegam para nada»

A audição promovida pelo PCP continuou depois com o testemunho de Pedro Duarte, produtor de cinema, que partilhando de muitas das preocupações já manifestadas (quanto à precariedade, entre técnicos, por exemplo), chamou à atenção para o facto de muitas rodagens previstas terem inevitavelmente de ser adiadas, colocando o problema da extensão dos respectivos orçamentos. Facto a que as entidades públicas não podem ser alheias.

Noutro plano, manifestou a sua oposição à opção, imposta nos últimos anos, de condicionar o cinema aos limites da produção audiovisual, e em relação às medidas anunciada pela RTP, de que iria adquirir mais obras nacionais, pagar a tempo e horas, desburocratizar, questionou: «Mas não deveria ser sempre assim?»

Cada caso

merece resposta

Particularidades que merecem resposta apontaram, também, Jacinta Bugalhão, dirigente do Sindicato dos Trabalhadores de Arqueologia, Conceição Sousa, professora da Academia dos Amadores de Música, e Francisco, livreiro e membro da recém criada rede de Livrarias Independentes.

Jacinta Bugalhão explicou que entre os arqueólogos não se sente com a mesma dimensão a perda de rendimentos, uma vez que estes trabalham muito ligados à construção civil, actividade que, todavia, se mantém. Não obstante, uma boa percentagem que labora a recibos verdes enfrenta obstáculos e desespero semelhantes aos já relatados, referiu, ao que acresce a insegurança dos que continuam a trabalhar em deficientes condições de higiene e segurança para o contexto de uma pandemia.

A dirigente do STARQ enfatizou, no entanto, a sua preocupação quanto ao futuro, designadamente na área do património cultural, «sector que deixou praticamente de ter apoio público», vendo o seu financiamento empurrado para a dependência da construção civil. Uma vez que o Ministério da Cultura «não teve uma palavra» para uma área que trata de bens públicos, inalienáveis, a apreensão é grande face ao previsível choque pós-coronavírus.

Já Conceição Sousa, criticou que à fragilidade em que subsistia o ensino artístico se junte agora a indefinição e ausência de apoios para que este continue, designadamente no sector particular e cooperativo, uma vez que «muitos pais encarregados de educação estão a perder capacidade para pagar as aulas».

O livreiro portuense, por seu lado, dando prova da capacidade de «reinvenção» e tenacidade destes profissionais – muitos estão a tentar não fechar as portas investindo nas vendas à distância –, indicou que os obstáculos que enfrentam não são muito diferentes, embora agravados, nomeadamente quanto à concorrência desleal dos grandes grupos.

A luta vai continuar

Antes de Ana Mesquita encerrar a iniciativa, Pedro Penilo, em representação da plataforma Manifesto em Defesa da Cultura, garantiu que «a crise epidémica não interrompe a luta» porque «a resposta do Governo tem sido de um descarado alinhamento com o pior da política de direita das últimas décadas – desinvestimento, elogio da caridade dos artistas, apelo a que a actividade se realize sem meios e sem respeito pelas especificidades, favorecimento da dependência do mercado e do falso mecenato».

«Os testemunhos confirmam a análise do PCP de que a Cultura vive uma situação de emergência há largos anos, pelo que esta crise vem pôr a nu situações que já existiam», concluiu Ana Mesquita, que garantiu todo o apoio e iniciativa do Partido a medidas que desbloqueiem apoios de natureza social aos trabalhadores e entidades, abrangendo «não apenas os problemas comuns mas as situações particulares».

«Também transparece que a saída passa por um plano nacional para as artes e cultura, que tenha uma estruturação de serviço público em todo o território com todas as pessoas com possibilidade de acesso»; passa por «avançar com uma proposta que combata a precariedade sem deixar de acolher especificidades e sazonalidades»; passa, por «uma política de cultura democrática», disse por fim Ana Mesquita, que insistiu na necessidade já antes identificada de dotar a Cultura de um financiamento de pelo menos 1 por cento do Orçamento do Estado.