A grua

Correia da Fonseca

Foi mais uma telenotícia. Breve, entre outras breves telenotícias. Falou-nos de uma grua e de um camião. E de um homem que por ali trabalhava. Brevemente nos contou que a grua desabara, que o camião deslizara, que o homem morrera esmagado. Contou-nos isso em poucas palavras talvez porque o noticiário tivesse muitos mais acontecimentos na agenda, porventura também porque do facto nem sequer haveria imagens capazes de suscitarem impacto no telepúblico. Ainda talvez porque nesta informação não havia cheiro a escândalo ou a intriga política: a grua assassina não era do governo, o camião também não, tudo se ficava assim na esfera da iniciativa privada. E o homem que morrera seria um trabalhador não especialmente qualificado, não um gestor ou equiparado com direito a vénia jornalística ainda que infelizmente póstuma. É sabido que, como regra geral, o tempo atribuído à notícia de morte de homem é directamente proporcional à sua relevância social se a tinha em algum grau, assim se prolongando após a morte algum resquício da vénia que lhe era prestada enquanto vivo.

A ganhar a vida

Será talvez adequado, contudo, ponderar que a morte por acidente de um trabalhador sem especial destaque nem na empresa onde um dia conseguira emprego nem na vida social onde teria um lugar decerto que discretíssimo não justificava uma especial atenção da operadora de TV que transmitia a notícia. Havia ali, porém, uma outra personagem: a grua. Pensando bem (ou talvez não muito bem, mas tão bem quanto era provável perante a forma como a notícia era dada), quem protagonizava o facto noticiado era a grua que empurrara a camioneta que esmagara o operário. Compreende-se: trabalhadores que morrem por acidente de trabalho há muitos, tantos que poucas vezes a televisão informa das mortes havidas (excepto no fim do ano ou do semestre, a título estatístico, e nem sempre), mas gruas assassinas que cometem crimes em cumplicidade com camionetas talvez não muito bem travadas haverá poucas. Tivesse a televisão, e concretamente a estação que transmitiu a notícia, alguma vocação investigatória perante um caso destes, e talvez os telespectadores tivessem podido saber um pouco mais. Mas é preciso compreender as circunstâncias: a culpa foi da grua. A notícia completou-se com a informação de que o órgão estatal adequado investigará eventuais responsabilidades, mas sejamos não apenas optimistas mas sobretudo realistas: não há-de ser nada. E, um dia destes, a televisão voltará com a notícia da morte de mais uma morte de homem. A trabalhar, isto é, a ganhar a vida.




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