A Palestina contra a farsa do século

Carlos Almeida

RE­SISTÊNCIA Em 2012, um re­la­tório da ONU anun­ciava uma pre­visão ma­cabra: em 2020, a vida hu­mana seria in­sus­ten­tável no ter­ri­tório pa­les­tino da faixa de Gaza1. À época, vi­viam na­quela es­treita língua de terra com cerca de 360 km2 de área, nas mar­gens do Me­di­ter­râneo, cerca de um mi­lhão e seis­centas mil pes­soas.

A uni­dade da re­sis­tência e o alar­ga­mento da so­li­da­ri­e­dade são de­ci­sivos para a vi­tória do povo pa­les­tino

De acordo com esse es­tudo, para sa­tis­fazer as con­di­ções mí­nimas de sub­sis­tência seria ne­ces­sário du­plicar o for­ne­ci­mento de energia eléc­trica, cons­truir de­zenas de mi­lhares de casas e cen­tenas de es­colas e ser­viços de saúde. Sem uma in­ter­venção ime­diata, os danos pro­vo­cados no aquí­fero se­riam ir­re­ver­sí­veis. Ad­mitia-se que seria ne­ces­sário um «es­forço her­cúleo» para travar a de­gra­dação em curso. Quando aquele re­la­tório foi pu­bli­cado, o blo­queio im­posto por Is­rael le­vava cinco anos e a po­pu­lação pa­les­tina en­fren­tara, no final de 2008, uma agressão do exér­cito is­ra­e­lita que pro­vo­cara perto de mil e qua­tro­centos mortos.

Em 2017, a ONU pu­blicou novo re­la­tório sobre o ter­ri­tório2. Três anos antes, uma nova e ainda mais mor­tí­fera ofen­siva mi­litar aba­tera-se sobre a po­pu­lação com o ba­lanço trá­gico de mais de 2200 mortos. Os bom­bar­de­a­mentos não pou­param nem as es­colas da ONU usadas como re­fúgio pela po­pu­lação. No preâm­bulo da­quele re­la­tório, o então co­or­de­nador das ope­ra­ções de ajuda hu­ma­ni­tária nos ter­ri­tó­rios pa­les­tinos, Ro­bert Piper, es­ti­mava que fora já ul­tra­pas­sado o li­mite a partir do qual a vida hu­mana dei­xava de ser viável.

À época, dez anos de­cor­ridos de blo­queio, uma cri­ança com 11 anos nunca teria vi­vido um único dia com mais de 11 horas de elec­tri­ci­dade e, nos tempos mais re­centes, não mais que duas horas. Poucas pes­soas ti­nham me­mória do dia em que a água po­tável corria das tor­neiras de forma re­gular e se­gura. O de­sem­prego si­tuava-se em mais de 60 por cento. Em 2016, a po­pu­lação da faixa de Gaza ul­tra­pas­sara a fas­quia dos 2 mi­lhões e as es­ti­ma­tivas para 2020 si­tu­avam-se na ordem de 2 mi­lhões e du­zentas mil pes­soas. O ce­nário de ca­tás­trofe ace­le­rava-se.

E eis-nos che­gados a 2020. No ano an­te­rior, o nú­mero médio per ca­pita de li­tros de água diá­rios não chegou aos 80, bem abaixo do mí­nimo de 100 li­tros re­co­men­dado pela OMS. Os ní­veis de po­luição no mar pro­vo­cados pela li­ber­tação de águas re­si­duais são mais do dobro do acei­tável. Os ser­viços de saúde atin­giram o ponto de rup­tura, em es­pe­cial com a re­pressão pelo exér­cito is­ra­e­lita das ma­ni­fes­ta­ções da Grande Marcha do Re­torno. Só para o ano de 2019 e até No­vembro, contam-se 108 mortos e 518 fe­ridos, estes, na sua mai­oria, com in­ca­pa­ci­dades para o resto da vida. A per­cen­tagem de me­di­ca­mentos es­sen­ciais no nível zero de ar­ma­ze­na­mento situa-se nos 46 por cento. Com 13 anos de blo­queio e duas ofen­sivas mi­li­tares de larga es­cala, a eco­nomia está des­truída. A agri­cul­tura e a pesca são su­fo­cadas pelo gar­rote im­posto por Is­rael. Em 2019, re­gis­taram-se 642 ocor­rên­cias em que sol­dados is­ra­e­litas im­pe­diram, a tiro, a ac­ti­vi­dade pis­ca­tória ou o acesso aos campos de cul­tivo3. Há poucos dias, a im­prensa em Is­rael dava conta que o exér­cito re­tomou as ope­ra­ções aé­reas de pul­ve­ri­zação das terras agrí­colas com her­bi­cida que, entre 2014 e 2018, des­truíram cul­turas numa ex­tensão de 14 km24.

Hi­po­cri­sias e cum­pli­ci­dades

Ne­nhum dos di­ri­gentes mun­diais que vi­sitou Je­ru­salém no pas­sado 23 de Ja­neiro para par­ti­cipar no Fórum Mun­dial sobre o Ho­lo­causto, pro­mo­vido pelo Go­verno de Is­rael, se des­locou a Gaza. Apesar dos alertas da ONU, todos, in­cluindo o Pre­si­dente da Re­pú­blica por­tu­guês, pre­fe­riram ig­norar a dra­má­tica si­tu­ação que se vive a menos de 80 km de Je­ru­salém. Todos, mesmo os que pro­movem o bran­que­a­mento do fas­cismo, das suas fi­guras e das suas po­lí­ticas, fi­zeram juras de nunca mais, mas a ne­nhum ocorreu vi­sitar um ter­ri­tório que é hoje o maior campo de con­cen­tração no mundo. Ali não existem câ­maras de gás, mas a ló­gica ge­no­cida do seu fun­ci­o­na­mento é por de­mais evi­dente.

Todos os que per­cor­reram o parque de Yad Vashem fi­zeram por es­quecer que pi­savam o chão de al­deias pa­les­tinas apa­gadas do mapa pelas mi­lí­cias si­o­nistas du­rante a Nakba, entre 1947 e 1948. Todos au­to­ri­zaram, com a sua pre­sença, uma in­de­co­rosa ope­ração de pro­pa­ganda que, sobre a me­mória das ví­timas do nazi-fas­cismo, pro­moveu a imagem de Ne­tanyahu – acu­sado pelo Pro­cu­rador Geral do seu país dos crimes de fraude e su­borno – e a sua cam­panha a favor da guerra contra o Irão onde, diga-se, vive uma co­mu­ni­dade de ju­deus so­ci­al­mente re­le­vante. Ao ponto de nin­guém se ter in­co­mo­dado por, dias antes, o pri­meiro mi­nistro de Is­rael ter ape­lado a san­ções, pasme-se, contra o Tri­bunal Penal In­ter­na­ci­onal porque a sua pro­cu­ra­dora geral, a ju­rista da Gâmbia Fatou Ben­souda, ad­mitiu uma in­ves­ti­gação sobre a prá­tica de crimes de guerra nos ter­ri­tó­rios pa­les­tinos ocu­pados por Is­rael em 1967.

Na oca­sião, al­guns lí­deres de­di­caram-se a ver­da­deiros exer­cí­cios de hi­po­crisia. O her­deiro da coroa bri­tâ­nica apro­veitou para vi­sitar Belém e, con­fes­sando-se cho­cado com o so­fri­mento dos pa­les­tinos, ex­pressou um apelo pi­e­doso à «paz e re­con­ci­li­ação». Numa jor­nada de me­mória e re­flexão sobre os crimes do pas­sado, não lhe ocorreu uma re­fe­rência à res­pon­sa­bi­li­dade pri­meira da Grã-Bre­tanha no so­fri­mento de ge­ra­ções de fa­mí­lias pa­les­tinas que viram as suas vidas para sempre des­tro­çadas pela po­lí­tica co­lo­nial do im­pério bri­tâ­nico. Mas a me­dalha do fin­gi­mento vai, sem dú­vida, para o pre­si­dente francês que, num ar­rufo de au­to­ri­dade im­pe­rial, im­pediu a se­gu­rança is­ra­e­lita de en­trar na igreja de Santa Ana, junto à Porta dos Leões, em Je­ru­salém, con­si­de­rada como ter­ri­tório so­be­rano francês desde o final do séc. XIX, numa cena se­me­lhante à pro­ta­go­ni­zada por Chirac, em 1996.

A im­prensa elo­giou a ati­tude de Ma­cron, mas si­len­ciou o facto de aquele acon­te­ci­mento ser tudo menos in­vulgar. Na ver­dade, sol­dados is­ra­e­litas ar­mados até aos dentes a en­trar vi­o­len­ta­mente dentro de casa alheia é uma re­a­li­dade que ne­nhuma fa­mília, ne­nhuma cri­ança pa­les­tina des­co­nhece e que, pelo con­trário, é parte do seu quo­ti­diano de opressão e es­po­li­ação.

Sin­gelas, mas sig­ni­fi­ca­tivas, estas ac­ções ajudam a ex­plicar a im­pu­ni­dade de que goza Is­rael. Elas per­mitem com­pre­ender por que razão os apelos da ONU sobre a ca­tás­trofe que se vive em Gaza per­ma­necem sem res­posta. Ou por que os re­la­tó­rios de or­ga­ni­za­ções de di­reitos hu­manos, de­nun­ci­ando a prá­tica sis­te­má­tica da tor­tura nas pri­sões de Is­rael, não me­recem uma linha da im­prensa in­ter­na­ci­onal5. Ou ainda por que razão a ge­ne­ra­li­dade dos países da Eu­ropa, a co­meçar por Por­tugal, não só não as­sume a de­fesa dos di­reitos do povo pa­les­tino como, pelo con­trário, mantém e apro­funda re­la­ções po­lí­ticas, eco­nó­micas e até mi­li­tares com Is­rael. Veja-se, a este pro­pó­sito, o acordo, as­si­nado em 2019 pelo go­verno por­tu­guês, para o equi­pa­mento dos aviões da Força Aérea com sis­temas de guerra elec­tró­nica pro­du­zidos por Is­rael e tes­tados na re­pressão contra a po­pu­lação pa­les­tina6.

A farsa do sé­culo

Uns dias de­pois da­quela en­ce­nação, agora em Washington, Trump di­vulgou o tão pro­me­tido «acordo do sé­culo», na pre­sença de Ne­tanyahu e dos em­bai­xa­dores dos Emi­rados Árabes Unidos, do Bah­rain e de Omã. Sem sur­presas, o plano con­firma tudo o que se anun­ciava: a ex­tensão da so­be­rania de Is­rael aos co­lo­natos na Margem Oci­dental e suas áreas de ex­pansão, in­cluindo toda a ci­dade de Je­ru­salém, bem como a ane­xação do vale do rio Jordão, o que, por junto, equi­va­lerá a perto de me­tade da Margem Oci­dental (que por sua vez cons­titui cerca de 20 por cento da Pa­les­tina ad­mi­nis­trada pelo Man­dato bri­tâ­nico). O plano prevê a trans­fe­rência da po­pu­lação pa­les­tina do cha­mado tri­ân­gulo – um con­junto de po­vo­a­ções pa­les­tinas ocu­padas em 1948 e de­pois ane­xadas por Is­rael nas ne­go­ci­a­ções do ar­mis­tício no ano se­guinte – num total de cerca de 260 mil pes­soas, de forma a ga­rantir o prin­cípio da ane­xação do má­ximo de terra com o mí­nimo de po­pu­lação. Con­sagra-se, por fim, a ane­xação dos montes Golã, ter­ri­tório ocu­pado à Síria na guerra de 1967.

Para os pa­les­tinos, se acei­tarem a hu­mi­lhação, ofe­rece-se a pos­si­bi­li­dade de, a prazo, cons­ti­tuírem uma es­pécie de es­tado nos ter­ri­tó­rios so­brantes, in­cluindo Gaza: uma en­ti­dade des­con­tínua, eco­no­mi­ca­mente in­viável, des­mi­li­ta­ri­zada, sem po­lí­tica ex­terna, sem so­be­rania sobre o es­paço aéreo e ma­rí­timo, sem ou­tras fron­teiras senão Is­rael. O dito plano con­sagra, ainda, a ab­di­cação dos di­reitos dos re­fu­gi­ados pa­les­tinos que a lei in­ter­na­ci­onal re­co­nhece desde a re­so­lução da ONU n.º 194, de 1948. O plano vem acom­pa­nhado de uma cam­panha que os pa­les­tinos bem co­nhecem: trata-se da «me­lhor oferta de sempre» que estão obri­gados a aceitar sob pena de so­frerem as con­sequên­cias, dessa forma le­gi­ti­madas, do seu im­pe­ni­tente ra­di­ca­lismo. Mas não é só nos seus termos pro­po­si­tivos que o plano de Trump é ina­cei­tável. Todo o dis­curso que o sus­tenta, her­dado da velha lin­guagem ori­en­ta­lista, et­no­cên­trica, tí­pica dos dis­cursos im­pe­riais que pre­ten­diam impor a ci­vi­li­zação sobre os povos que co­lo­ni­zavam, apre­sen­tados como bár­baros, vi­o­lentos e in­ca­pazes de se go­ver­narem, re­produz a nar­ra­tiva le­gi­ti­ma­dora do si­o­nismo, sem vis­lumbre de pre­o­cu­pação e res­peito pela his­tória. Como é fácil de ver, ne­nhum di­ri­gente pa­les­tino pode aceitar tais con­di­ções.

A en­ce­nação de Trump não se des­tina a ser le­vada a sério como pro­posta de re­so­lução do pro­blema, mas nem por isso o seu al­cance e gra­vi­dade devem ser me­nos­pre­zados como pa­recem su­gerir al­guns co­men­tá­rios. No ime­diato, ela pre­tende le­gi­timar o avanço da ane­xação e ju­dai­zação de toda a Pa­les­tina, seja pela ex­pulsão da po­pu­lação pa­les­tina seja pelo seu con­fi­na­mento em en­claves se­gre­gados, como já é hoje Gaza e toda a Margem Oci­dental, uma ter­ceira Nakba como es­creveu o jor­na­lista Gi­deon Levy. Mas o plano de Trump trans­porta uma outra men­sagem su­bli­minar: ao pre­tender mudar as re­gras do jogo, es­ta­be­le­cendo o que chama «um novo ca­pí­tulo na his­tória do Médio Ori­ente», ele pre­tende inu­ti­lizar po­li­ti­ca­mente os fun­da­mentos de di­reito e le­ga­li­dade in­ter­na­ci­onal que sus­tentam de forma só­lida os di­reitos do povo pa­les­tino. Ao fazê-lo, na ver­dade, Trump e os cír­culos mais re­ac­ci­o­ná­rios do im­pe­ri­a­lismo norte-ame­ri­cano pro­curam ins­ti­tuir uma nova forma de re­gu­lação das re­la­ções in­ter­na­ci­o­nais que, fun­dada no que se de­signa como «re­a­li­dades no ter­reno», le­gi­tima o pri­mado do mais forte.

Dir-se-á que o sis­tema de re­la­ções in­ter­na­ci­o­nais era já uma ex­pressão da con­ju­gação de in­te­resses que em cada mo­mento se re­ve­lava mais po­de­rosa. É ver­dade, mas ainda assim, mesmo que apenas como exer­cício re­tó­rico, não se dis­pen­sava a le­gi­ti­mação da acção po­lí­tica e di­plo­má­tica nas fontes do di­reito in­ter­na­ci­onal e de­sig­na­da­mente na Carta das Na­ções Unidas e nas re­so­lu­ções da ONU. O plano de Trump dis­pensa tudo isso, e pre­tende con­sa­grar o exer­cício do poder do mais forte, por todas as formas, in­cluindo a guerra, en­quanto fonte de di­reito e ins­tru­mento lí­cito nas re­la­ções in­ter­na­ci­o­nais. Por isso, ne­nhuma am­bi­gui­dade é acei­tável na abor­dagem ao plano de Trump. Ele en­cerra a sen­tença de morte para a ONU e a aber­tura de um pre­ce­dente com im­pli­ca­ções im­pre­vi­sí­veis. Ver-se-á até onde irá o si­lêncio e a cum­pli­ci­dade dos que, no mundo árabe ou na Eu­ropa, têm man­tido um dis­curso ofi­cial fa­vo­rável à so­lução dos dois es­tados con­forme as re­so­lu­ções da ONU e ao mesmo tempo co­o­peram com Is­rael e com­pro­metem a so­lução que dizem de­fender.

Um sé­culo de­cor­rido de luta, com o sa­cri­fício de ge­ra­ções de ho­mens e mu­lheres, o povo pa­les­tino en­frenta uma ofen­siva po­de­rosa contra os seus di­reitos num quadro in­ter­na­ci­onal mar­cado por um grave de­se­qui­lí­brio de forças. A uni­dade entre as forças da re­sis­tência na­ci­onal, assim como a força e de­ter­mi­nação do mo­vi­mento in­ter­na­ci­onal de so­li­da­ri­e­dade com a sua luta, serão de­ci­sivos para travar esta ba­talha. Se na noite mais lú­gubre dos campos de ex­ter­mínio do nazi-fas­cismo foi pos­sível re­sistir e manter viva a es­pe­rança na li­ber­tação, assim também o povo pa­les­tino sa­berá en­con­trar os ca­mi­nhos para um fu­turo de paz, in­de­pen­dência e so­be­rania.