Dois livros para um Novo Ano

Domingos Lobo

Em tempos de convulsão, há livros que fogem aos «modismos» de passagem

Nós amamos a carne das palavras
sua humana e pastosa consistência
seu prepúcio sonoro sua erecta presença.
Com elas violentamos
O cerne do silêncio

José Carlos Ary dos Santos

José da Cruz Santos, da editora Modo de Ler, já aqui o dissemos, pertence a uma espécie invulgar de editores que amam o livro, os autores e o modo rigoroso como elaboram o objecto que chega aos leitores. Que arriscam, num tempo em convulsão, fazer livros que fogem aos modismos de passagem, que teimam sobre o raro e a lisura e fazem livros que tentam libertar-nos ao lixo circundante. Que nos estimulam e provam que ainda é possível produzir livros assim num tempo de usura e mediocridade impante.

Comecemos pela antologia No Dentro e Fora das Palavras, organizada por Maria Hercília Agarez, singular colectânea que tem a Palavra e seus estranhos enigmas, como substância temática.

A autora escolheu, como modo de abordagem dos textos, percorrendo o século XX, a forma cronológica a partir das datas de nascimento dos respectivos autores. Assim, a abrir, Fernando Pessoa e seus heterónimos mais conhecidos, finalizando com Filipa Leal, poeta nascida em 1979. A antologia abarca, nesse contexto temático (a palavra como elemento central, especulativo do acto poético), poemas dados à estampa no século pretérito, sendo estes também representativos da diversidade estética e dos movimentos literários que criaram o fulcro da poesia nesse período.

As palavras, estas que o livro nomeia, se movem e desordenam, inscrevem o seu punho, o seu substantivo néctar, em vozes múltiplas, que dizem da tristeza, do êxtase, das paixões, de memórias, de rarefeitos sinais do tempo, de nostalgia, de perturbadoras sombras, de inquietos rumores. Sem as palavras, todas as palavras e estas que neste livro habitam como signos, apenas o silêncio germinaria em bocas cariadas de cardos. Os poemas antologiados por Maria Ercília Agarez resgatam o húmus simbólico das palavras para que com elas, como nos diz Ary, possamos Violentar o cerne do silêncio.

Percorrem este livro autores tão importantes como José Gomes Ferreira, Gedeão, Torga, Sena, Sophia, Carlos de Oliveira, Saramago, Natália Correia, Alexandre O´Neill, Albano Martins, Ary, Ruy Belo, Armando Silva Carvalho, Nuno Júdice, Maria do Rosário Pedreira e tantos outros nomes centrais da nossa lírica.

O segundo livro desta safra Camilo Castelo Branco Responde Cento e Vinte Anos Depois a Eça de Queirós, é, na sua forma, mais um objecto culto e de culto. Coordenado por José da Cruz Santos, este álbum, que traz entre outros elementos gratos aos sentidos, quatro magníficos retratos de João Abel Manta, dois de Camilo e dois de Eça, e um prefácio de Vasco Graça Moura, que também reinventa, de forma brilhante, num português que homenageia o génio de S. Miguel de Ceide, a resposta que Camilo não teve oportunidade de dar à missiva que Eça de Queirós escreveu e que nunca lhe enviou. Duas missivas plenas de sarcasmo e notícias de um tempo de plenitude criativa e de pequenas escaramuças literárias. Em português de primeiríssima água.

Sobre essa carta, escreveu mestre Aquilino Ribeiro, no seu livro Camões, Camilo, Eça e alguns mais: Ah, se a carta vem a público, teríamos hoje a gozar os passes dum homérico desforço. […] À semelhança de Anteu, o velho requintava nas suas qualidades de luta, cada vez mais sarcasta, mais dialecta, mais denodado, mais mordente, volteando a pena, consoante o ensejo, flame, varapau, estilete, vara de prestidigitador. Foi esse instrumento polimórfico que Eça temeu e desta vez foi-lhe bom conselheiro o dedo mendinho.

Cento e vinte anos depois, Camilo/Graça Moura deu-lhe resposta: Agora, enquanto os dois médicos, Brás Luís de Abreu e Carlos da Maia, andam por aí fingindo que não se conhecem, estou mesmo a pensar em pôr o pequeno pegureiro com que começo a Maria Moisés a contorcer-se em práticas solitárias ante o retrato da Brasileira de Prazins.

Não conheço modo mais salutar de abrir às leituras neste novo ano.

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No Dentro e Fora das Palavras, de Maria Hercília Agarez – Mododeler

Camilo Castelo Branco responde cento e vinte anos depois a Eça de Queirós Mododeler




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