Fulgor e criatividade do teatro português
CULTURA A Companhia de Teatro de Almada (CTA) apresentou na passada sexta-feira, 10 de Janeiro, a programação para 2020 do Teatro Municipal Joaquim Benite. No mesmo dia, mas no Teatro Municipal de São Luiz, em Lisboa, a Escola de Mulheres estreou a Sem Flores Nem Coroas, de Orlando da Costa, com encenação de Fernanda Lapa. Um dia em grande para o teatro português.
A CTA estreia quatro criações próprias em 2020
1. GTC/CTA – Memória de passagem
O Grupo de Teatro de Campolide (GTC) foi, a partir de 1971, nesses anos de todos os riscos e anseios, um projecto conceptualmente inovador. Com uma estrutura, no seu início, de grupo de amadores, distinguia-se destes pelos métodos de produção dos seus espectáculos, pelo rigor, arrojo e inventiva das encenações, pela intervenção social e política que os textos propostos ressumavam, integrando o Grupo no tecido social de um bairro popular, através do criterioso labor do seu dramaturgo-residente Virgílio Martinho (ideia pioneira, infelizmente ainda hoje rara na orgânica das nossas companhias teatrais), e das capacidades criativas de Joaquim Benite, vindo do jornalismo e da crítica teatral, que tornavam o GTC uma referência e par das ideias centrais de preocupação estética, vanguardista e interventiva, de claríssimo cunho antifascista, presentes em grande parte dos trabalhos que os grupos de Teatro Independente seus contemporâneos, igualmente desenvolviam.
Espectáculos como O Avançado-Centro Morreu ao Amanhecer, de Agustin Cuzzani, A Vida do Grande D. Quixote de la Mancha e do Gordo Sancho Pança, de António José da Silva, Filopópolus, de Virgílio Martinho, e, já após o 25 de Abril, Fulgor e Morte de Joaquim Murieta, de Pablo Neruda, e O Grande Cidadão, peça baseada no romance homónimo de Virgílio Martinho, todas encenadas por Joaquim Benite, são ainda hoje criações marcantes, não apenas de uma afectiva memória geracional, mas contributos impressivos para uma nova ideia de teatro popular, inteligente, interventivo, elemento transformador das sociedades, para que o GTC, então já profissionalizado, tivesse uma matriz referencial, pela dinâmica e prática dos seus espectáculos, pela concepção inovadora do espaço (uma pequena colectividade em Campolide), pela revelação de alguns actores de primeiríssima colheita, Teresa Gafeira, José Martins (também encenador) e António Assunção, entre outros.
No Teatro da Trindade, para onde o GTC se muda, mercê das correntes de público que granjeara, serão montadas, entre 1977 e início de 1978, as peças 1383, de Virgílio Martinho, a partir das Crónicas de Fernão Lopes, encenada por Joaquim Benite; D. Quixote Libertado, de Anatóli Lunatcharski, dirigida por José Martins, e O Santo Inquérito, de Dias Gomes, com encenação de Joaquim Benite, repetindo no Trindade, com enorme êxito, o trabalho anteriormente desenvolvido com a Companhia Seiva Trupe, do Porto. As influências do teatro épico brechtiano são, neste período, nítidas nas opções estéticas do GTC e nas propostas literárias que tentam, pela irreverência, ir ao encontro de um público novo, exigente e ávido de conhecer os textos que durante décadas lhes haviam sido negados.
Em 1978, o GTC muda-se para Almada, instalando-se na Academia Almadense e aí produz um dos seus mais emblemáticos espectáculos: o poderoso texto de José Saramago, A Noite, que Benite encena com feliz inventiva e competência, na qual o autor de Memorial do Convento descreve a noite de 24 para 25 de Abril, vivida na redacção de um dos jornais de referência do regime, pondo em cena as lutas e os antagonismos das várias classes em confronto, das corruptas administração e direcção, dos jornalistas vendidos à propaganda do fascismo e à defesa do grande capital, pensando viver um pesadelo, em discurso dialéctico com os operários tipógrafos os quais, durante décadas, haviam sonhado, e lutado, para que essa madrugada libertadora fosse possível.
Sobre esta peça escreverá, então, o crítico Carlos Porto: Espectáculo de grande eficácia, pelo texto, pela encenação, pela interpretação, e também pelo engenhoso dispositivo cénico inventado por António Alfredo.i
O GTC transforma-se em Companhia de Teatro de Almada (CTA), é já outro o seu estatuto no panorama teatral português, outro e mais abrangente o público que acorre aos seus espectáculos. Do Teatro Municipal de Almada, para onde a CTA se transfere em 1988, até às suas actuais instalações, esse belíssimo espaço de todas as artes que é o Teatro Municipal Joaquim Benite (TMJB), muitos e memoráveis espectáculos foram produzidos e outros que a dinâmica do CTA foi inscrevendo nesse roteiro, num projecto que visa levar o teatro a todos os públicos e a todos os espaços, mesmo aos que consideraríamos improváveis para a função, durante o Festival de Almada, no mês de Julho de todos os prodígios, trazendo à cidade e ao País o que de melhor e mais singular, no campo das artes performativas, se vai criando pelo Mundo.
Com o desaparecimento prematuro de Joaquim Benite, a 5 de Dezembro de 2012, coube ao dramaturgo e encenador Rodrigo Francisco assumir a direcção artística da CTA, mas as premissas fundadoras do projecto iniciado em 1971, mantêm-se, naturalmente ajustadas às dinâmicas culturais e às exigências conceptuais deste nosso tempo.
2. Programa do Teatro Joaquim Benite para 2020
Segundo Rodrigo Francisco, no bem concebido programa que no pretérito dia 10 foi apresentado à comunicação social e ao público, em 2020 a Companhia de Teatro de Almada realiza quatro criações de textos de autores que atravessam cinco séculos: William Shakespeare, Jonathan Swift, Ferenc Molnár e Elfriede Jelinek.
Cabe ao encenador Nuno Carinhas a tarefa de dirigir a peça Viagem de Inverno, da Nobel da Literatura, em 2004, a austríaca Elfriede Jelinek; Peter Kleinert, que em 2018 encenou para a Companhia a peça de Brecht A boa-alma de Sé Chuão, regressa para dirigir a comédia de Shakespeare Noite de Reis, ou como lhe queiram chamar, numa versão cénica que terá, como acontecia na peça de Brecht, uma forte componente musical; a Rodrigo Francisco cabe a encenação de Prelúdio ao Rei Lear, de Ferenc Molnár, comédia baseada na famosa peça do dramaturgo inglês, numa trama que põe o teatro dentro do teatro; a grande actriz Teresa Gafeira, que iremos ver, nessa qualidade, nas peças Noite de Reis e Viagem de Inverno, dirigirá, para o público mais jovem (uma das vertentes teatrais a que a actriz, com êxito, se tem dedicado; projecto lúdico/didáctico que se projecta no futuro), o clássico de Swift As Viagens de Gulliver.
Para além da produção própria, o TMJB receberá ao longo do ano outras estruturas teatrais, como o Teatro Nacional D. Maria II, Escola de Mulheres, Artistas Unidos, Companhia de Teatro do Algarve, Cegada Grupo de Teatro, Teatro Nacional São João e a Companhia de Teatro de Braga, entre outras, num projecto de partilha e diversidade culturais, visando trazer a Almada as criações mais relevantes que as várias estruturas, espalhadas pelo País, vão produzindo.
A música e o bailado fazem, igualmente, parte integrante da vasta programação do TMJB, através de parcerias estabelecidas com a Companhia Nacional de Bailado, a Orquestra Sinfónica Portuguesa, o Coro do Teatro Nacional de São Carlos e a Orquestra Gulbenkian, que reflectem, escreve Rodrigo Francisco, «esteios de uma programação eclética de teatro, música e novo circo que ao longo do ano irá ao encontro de quem quiser cruzar-se com o prazer e o mistério da fruição artística».
A literatura, as artes performativas e o teatro em particular são, como refere Octávio Paz, «artes de comunhão», com a particularidade de, no caso do teatro, essa ligação, a partir do ritual que é a arte de representar, como o entende Peter Brook, só se cumprirá inteiramente perante o público, com o público, sobre um espaço cénico. E esse público, exigente e ávido, existe e frequenta esse espaço cultural, dinâmico, plural e único que é o TMJB, prosseguindo em Almada o projecto de um grupo de jovens que, com Joaquim Benite e Virgílio Martinho, há quase meio século sonhou um teatro livre num país mais justo. O sonho inicial prossegue e amplia-se a cada novo ano.
3. Sem Flores Nem Coroas, de Orlando da Costa, pela Escola de Mulheres
Fernanda Lapa, actriz e encenadora, cumpriu a promessa de encenar Sem Flores Nem Coroas, o texto de Orlando da Costa sobre os últimos dias das possessões na Índia, ou seja, as 36 horas de Goa, que reflecte a angústia das populações e dos soldados portugueses, comandados pelo general Vassalo e Silva, aos quais Salazar ordenara que combatessem até ao último homem.
Esta peça de Orlando da Costa fala não apenas do início da queda do colonialismo português mas igualmente dos modos como habitámos, durante séculos (na Índia, a partir de 1505), esses territórios. «A peça de teatro Sem Flores Nem Coroas leva o leitor/espectador até 16 de Dezembro de 1961, data do fim da Índia portuguesa, através de uma linguagem dramática que não esconde toda a arrogância e autoritarismo característicos do estilo salazarista e que, afinal, caracteriza Pai/Salú, uma das personagens da peça. Salú é um homem intransigente, incapaz de consensos, como o foi Salazar»ii.
Desta forma, e para além das circunstâncias históricas, o texto de Orlando da Costa transporta a denúncia corrosiva de um mundo de papelão, amoral e cínico, de um império a esboroar-se em retórica pífia e beata, exibindo o outro lado do espelho: o lodo, o sórdido, o abismo infernal e agreste de um regime feudal, cuja mitologia foi transportada para o seio das famílias, corroendo-as. Mas, o futuro estará nas mãos dos jovens: a Filha e Bastú criarão um novo e mais justo tempo.
A peça subiu a cena no dia 10 de Janeiro, no teatro de S. Luiz e prosseguirá com representações desta quinta-feira a domingo. Espectáculo, evidentemente, a não perder. Trata-se de um grande momento de teatro, de uma encenação modelar de Fernanda Lapa, sobre uma peça cuja estrutura e a linguagem, simbólica e codificada, torna, por vezes, ao comum dos espectadores, de difícil abordagem. Lapa consegue tornar inteligíveis, através de um rigoroso trabalho de luz, música e utilização do espaço, e jogando com os movimentos do Coro e dos figurantes, as passagens mais sombrias do texto. Os actores, com destaque para João Grosso e Margarida Marinho, e o espaço cénico e figurinos de António Lagarto, contribuem para este magnífico espectáculo, também ele uma merecida, e tocante homenagem a Orlando da Costa.
_____________
i Carlos Porto, Dez Anos de Teatro (1974/84), Lisboa: 1985, Caminho, p. 75,
ii Filomena Gomes Rodrigues, Sem Flores Nem Coroas: reflexões sobre a peça de teatro, in Vértice, nº.192, p.70/71, Lisboa, 2019