Agricultura familiar: reconhecimento não basta

João Dias

PRODUÇÃO No seguimento da aprovação, no 7.º Congresso da Confederação Nacional da Agricultura/CNA, em Novembro de 2014, de uma proposta de Estatuto da Agricultura Familiar, o PCP apresentou na Assembleia da República, por duas vezes, iniciativas nesse sentido, ambas chumbadas pela conjugação dos votos de PS, PSD e CDS.

A agricultura familiar é decisiva para a soberania alimentar do País e para a defesa do mundo rural

Anos de luta e reivindicação pelo reconhecimento do papel da Agricultura Familiar, que só será efectivo com a concretização das necessárias e justas medidas de apoio e de discriminação positiva para os agricultores familiares. Razões pelas quais a Confederação Nacional da Agricultura e o PCP têm assumido a frente da luta na defesa da materialização do Estatuto da Agricultura Familiar.

Sendo relevante, o reconhecimento do seu papel e o enunciado dos seus direitos, por si só, não basta. É imprescindível a adopção de medidas estruturais de defesa do mundo rural e da agricultura familiar pela importância estratégica que assumem na produção nacional, na qualidade e soberania alimentares, na ocupação harmoniosa do território, na defesa do meio ambiente e da floresta, na coesão económica e social em extensas regiões do País.

É preciso não esquecer que é justamente nas regiões onde as desigualdades territoriais são mais sentidas que o despovoamento, a precariedade, o desemprego, os baixos salários e a exploração de mão-de-obra barata atingem níveis mais preocupantes, tudo ingredientes usados para confeccionar a receita da concentração da riqueza e da propriedade, ao serviço da gula e dos interesses capitalistas do agronegócio.

O resultado de opções políticas de costas voltadas para o mundo rural e para a agricultura familiar é a preocupante ruína daqueles que, a muito custo, vão tentando resistir à ofensiva contra a pequena propriedade e pequena produção. Por isso, o PCP aponta como solução para o País a necessidade de uma aposta forte na agricultura familiar, na pequena e média agricultura, vocacionadas para a produção de proximidade e de qualidade e para a criação de emprego, para além dum vasto conjunto de serviços públicos, que só com uma agricultura familiar dinâmica podem ser prestados.

Agricultura Familiar,
um Estatuto por concretizar

A 15 de Abril de 2018, no 8.º Congresso da CNA e da Agricultura Familiar, realizado sob o lema «Soberania Alimentar, com a Agricultura Familiar», Capoulas Santos, na altura Ministro da Agricultura, hábil em fazer anúncios, apregoou o seu total empenho na aprovação de um diploma que definisse direitos e medidas específicas de apoio à agricultura familiar. A 7 de Agosto, com a intervenção decisiva do PCP, foi finalmente publicado o Decreto-Lei n.º 64/2018, que, ainda que respondendo parcialmente à reclamação há muito formulada pelos agricultores, não passou, até agora, de uma «mão cheia de nada».

O Estatuto fica-se pelo reconhecimento, difícil de obter e de carácter assistencialista, uma vez que não há ainda medidas concretas que valorizem a actividade de exploração e de dinamização do mundo rural. Para além de precisar de regulamentação das medidas a promover por cada um dos nove ministérios envolvidos, que nunca mais vêem a luz do dia, não veio acompanhado dos meios para a sua concretização. No fundo, a publicação do Estatuto da Agricultura Familiar oco, sem medidas, não passa de uma simples declaração de intenções sem valor e substância, que veio comprovar a denúncia há muito apontada pelo PCP de que, tendo o Governo em suas mãos a solução, está mais preocupado em fazer alguma coisa para deixar tudo na mesma, ou seja, à mercê dos interesses do agronegócio, não respondendo, de facto, aos problemas dos pequenos e médios agricultores familiares em Portugal.

A prova ficou logo feita em Novembro de 2018. Três meses depois de tão importante instrumento – o Estatuto da Agricultura Familiar – ter visto a luz do dia, já o PCP via ser rejeitada a sua proposta de alteração ao Orçamento do Estado para 2019 que propunha um Programa de Valorização da Agricultura Familiar e do Mundo Rural com um montante até 50 milhões de euros para sua a implementação.

Ora, se realmente o então governo do PS (e o actual parece ir pelo mesmo caminho) tivesse interesse em concretizar as medidas necessárias à corporalização do Estatuto teria aprovado a proposta do PCP. É caso para se dizer que se apanha mais rápido um ardiloso do que um coxo, que conseguiu a proeza de ficar com os louros da concretização do ambicionado Estatuto sem qualquer efeito prático.

Os agricultores familiares não tiveram ganhos ou direitos atribuídos pelo Estatuto, sentem a falta de apoios que lhes garantam preços justos pagos à produção, que assegurem o escoamento da produção, deparando-se com uma distribuição de valor da cadeia alimentar que esmaga a actividade agrícola aos interesses das grandes agroindústrias e distribuição.

Trata-se de opções políticas entre a defesa dos interesses da grande produção e do grande agronegócio, que assenta num modelo de exploração agrícola que procura a vertiginosa obtenção do lucro máximo no mais curto intervalo de tempo, ou de um modelo que se preocupe com as funções que a agricultura familiar desempenha, não só na produção de alimentos, mas também do bem-estar animal, do respeito e protecção do ambiente, da biodiversidade e dos recursos naturais, da saúde da pública, da coesão territorial e da soberania alimentar.

Não permitiremos que se faça do Estatuto da Agricultura Familiar a Bela Adormecida da agricultura, sem vida, à espera de um dia vir a ser animado com as medidas e regulamentação que o materializem. É necessário simplificar o acesso ao Estatuto e principalmente, tal como o PCP tem vindo a exigir e propor, a disponibilização de verbas que financiem os apoios a conceder aos agricultores. Nesse sentido, já no início da actual legislatura, o PCP apresentou na Assembleia da República um Projecto de Resolução com vista à simplificação do acesso ao Título de Reconhecimento do Estatuto da Agricultura Familiar e a concretização de apoios aos seus titulares. Projecto que procura eliminar os diversos obstáculos que dificultam a atribuição do estatuto, no que respeita aos critérios de acesso e à forma de o requerer, propondo um conjunto de recomendações que reduzirão os entraves ao Estatuto por aqueles que dele deverão beneficiar e que actualmente estão completamente arredados.

A agricultura familiar enquanto
instrumento do espaço rural

Falaciosamente assistimos a juras de amor à agricultura familiar, ao mundo rural e aos territórios mais desfavorecidos, mas o que na prática resulta é mais do mesmo, ou seja, a desvalorização do mundo rural, com aprofundamento das assimetrias regionais que tanto interessam ao grande capital do agronegócio.

Falamos em mundo rural porque não se trata apenas de problemas circunscritos ao interior, ao Norte, ao Sul do País ou mesmo às Ilhas, são justamente regiões, independentemente da geografia, onde a actividade agrícola é, ou pode voltar a ser, o principal motor de desenvolvimento económico e social, que estão sujeitas a problemas e dificuldades que atingem o País como um todo e para os quais não foram, intencionalmente, dadas as respostas conducentes a um desenvolvimento equilibrado do território nacional.

O maior exemplo do aprofundamento das assimetrias regionais são os sucessivos programas de fundos comunitários, anunciados como de combate às assimetrias e promoção da coesão territorial e social, mas que acabam por privilegiar a grande produção, sobrepondo-se à soberania do País, à protecção da saúde e do ambiente.

Preparamo-nos para mais um desses anúncios, como é o próximo orçamento da União Europeia para a Política de Coesão no período de 2021 a 2027. As preocupações são mais do que compreensíveis, não só pela avaliação das políticas actuais e passadas dos sucessivos governos e da União Europeia, mas porque o actual Governo do PS rapidamente quis deixar bem claro ao que vinha. Desde logo, pela opção que constituiu a passagem da tutela das florestas do Ministério da Agricultura para o Ministério do Ambiente e Acção Climática, o que representa uma concepção de quem não está interessado em reconhecer o importante papel da agricultura familiar, que em grande parte são também produtores florestais, na gestão activa da floresta.

O que se tem verificado nos sucessivos quadros comunitários e na Política Agrícola Comum, e nos respectivos programas agrícolas da União Europeia, é a transferência de milhões de euros para a grande propriedade, que utiliza métodos de exploração intensivos da terra, de que são exemplo a monocultura intensiva e super-intensiva do olival e amendoal, que vão destruindo os melhores solos de barro do Alentejo e poluindo os aquíferos com quantidades industriais de agroquímicos.

Nesse sentido, a defesa de uma agricultura ao serviço do desenvolvimento do País implica, também, enfrentar os constrangimentos que a União Europeia hoje representa.
Não podemos deixar de referir a incoerência da tão proclamada evolução da produção agrícola. É absolutamente contraditório que se enalteça a actividade agrícola por ser detentora de um vigoroso avanço tecnológico, ao mesmo tempo que o país se vê confrontado com o despovoamento de vastos territórios, absolutamente carenciado de muitos bens alimentares necessitando de recorrer a importações crescentes e a mão-de-obra, muitas vezes imigrante, de baixo custo.

Será na agricultura de base familiar que encontraremos a resposta aos efeitos nefastos da grande produção, focada na exportação, pelo que nunca é de mais recordar o que a CNA preconiza na «Carta da Lavoura Portuguesa», aprovada no seu 8.º Congresso:

  • defender a agricultura familiar e o mundo rural português;

  • promover o aumento dos rendimentos da agricultura familiar;

  • aumentar a produção nacional em bens agroalimentares para assegurar a Soberania Alimentar de Portugal;

  • proporcionar à população de Portugal uma alimentação saudável e acessível;

  • promover o rejuvenescimento do tecido produtivo na agricultura portuguesa e revitalizar o mundo rural.

Os problemas e as dificuldades com que se depara a agricultura familiar permanecem actuais, com todas as limitações e imposições que conduzem ao seu enfraquecimento, de tal forma que a ONU decidiu promover o Decénio das Nações Unidas para a Agricultura Familiar 2019 – 2028, de que Portugal foi mesmo um dos países promotores, porque os agricultores familiares demonstram a «sua capacidade de desenhar novas estratégias e dar respostas inovadoras aos desafios emergentes de índole social, meio ambiental, e económica. Não só produzem apenas alimentos. Cumprem simultaneamente funções meio ambientais, sociais e culturais e são os guardiões da biodiversidade ao preservar a paisagem e conservarem o património comunitário e cultural».

É por isso que a luta pelo direito à terra, a produzir e a ter o seu trabalho justamente remunerado, se mantém actual e necessária.