Povos da América Latina lutam pelo progresso e a soberania

SOLIDARIEDADE «Os novos desafios para a paz na América Latina» foi o lema da conferência que o Conselho Português para a Paz e Cooperação (CPPC) promoveu no sábado, 16, em Lisboa, no preciso momento em que na região se travam decisivas lutas pela democracia, a soberania e a paz.

A América Latina está desde há décadas no centro da luta anti-imperialista

O auditório da Escola Profissional Bento de Jesus Caraça foi, uma vez mais, o local escolhido pelo CPPC para dar voz à solidariedade aos povos que, por esse mundo fora, insistem em defender o seu inalienável direito ao desenvolvimento soberano. Enfrentando, por isso, tantas e tantas vezes o golpismo, a violência, a chantagem, a agressão do poderoso vizinho do Norte, os Estados Unidos da América, e das oligarquias nacionais ao seu serviço.

O cartaz da conferência evocava o monumento do arquitecto comunista brasileiro Oscar Niemeirer inspirado no livro de Eduardo Galeano As Veias Abertas da América Latina, fazendo jus à dimensão histórica das lutas dos povos da América Latina e Caraíbas, tão antigas quanto a colonização e que desde as independências se confrontam com a tentação neocolonial dos EUA: a Doutrina Monroe, proclamada pelo presidente James Monroe na primeira metade do século XIX, reclamava «a América para os americanos», entenda-se os imensos recursos naturais da América Central e do Sul para os monopólios da América do Norte. É precisamente esta doutrina que a administração Trump abertamente recuperou, por mais que nunca tenha sido efectivamente afastada.

Daí que na América Latina, porventura mais ainda do que noutras regiões do mundo, as lutas pelo progresso e a justiça social estejam profundamente ligadas à luta pela soberania nacional e à cooperação efectiva e mutuamente vantajosa entre os diversos países e povos, cumprindo o projecto de Simón Bolívar, O Libertador, patente no conceito da Nuestra America (a nossa América). O internacionalismo é, ali, vivo e vibrante e os protagonistas e heróis de combates passados são referências perenes para os que hoje se travam. Do índio Tupac Katari, que antes de ter sido executado garantiu que «voltaria sendo milhões» (frase que o escritor norte-americano Howard Fast poria na voz do seu Spartacus), a Bolívar, de Zapata a Sandino, de Prestes a Marulanda, de Fidel a Allende, de Ché a Chávez.

O internacionalismo, a fraternidade dos povos que compõem a Pátria Grande e esta ideia segundo a qual os combates que hoje se travam correspondem a uma nova etapa desta luta secular pela verdadeira independência dos estados e povos latino-americanos estiveram presentes nas intervenções proferidas na conferência e na música de Joana Manuel e Rui Galveias, dois dos elementos do grupo El Sur, que interpretaram de forma irrepreensível e emocionante canções de Victor Jara, Violeta Parra e Inti Ilimani, neste último caso El Pueblo Unido Jamas Sera Vencido, cujo refrão está a ser entoado tantas vezes por estes dias nas ruas do Chile.

Soberania ou submissão?

Na mesa da conferência estavam, pelo CPPC, Ilda Figueiredo e Luís Carapinha, e ainda os embaixadores de Cuba e da Venezuela, Mercedes Martínez e Lucas Rincón Romero, respectivamente. Na sala, para além de elementos de organizações sociais habitualmente empenhadas na luta pela paz e na solidariedade, estavam representados os Colombianos Pela Paz, a Associação de Chilenos em Portugal e o núcleo do Partido dos Trabalhadores (do Brasil) em Lisboa.

A abrir os trabalhos, a presidente da direcção do CPPC, Ilda Figueiredo, chamou a atenção para o ritmo acelerado com que se processam as alterações políticas na região: «há um mês ninguém imaginaria o que se está hoje a passar no Chile ou na Bolívia», realçou, acrescentando que o recente golpe de Estado neste último país está longe de ser um caso isolado na América Latina, recordando o sucedido recentemente nas Honduras, no Paraguai ou no Brasil. Recuando mais no tempo, o rol de golpes de Estado na América Latina é imenso, sendo o de 11 de Setembro de 1973 no Chile apenas o mais conhecido deles.

Depois de Ilda Figueiredo ter recordado que a solidariedade com os povos é uma das razões de ser do CPPC, Luís Carapinha sublinhou que ela é inquebrável por mais adversa que seja a situação na América Latina. Se a correlação de forças não é hoje tão favorável às forças do progresso e da paz como era há, por exemplo, cinco anos, ela é ainda melhor do que era em meados da última década do século passado, quando só Cuba socialista resistia ao imperialismo.

A vitória de Hugo Chávez nas eleições presidenciais venezuelanas de 1998 abriu caminho à vaga progressista que marcou e marca os primeiros 20 anos do novo milénio, que teve continuidade com as sucessivas vitórias eleitorais de Evo Morales na Bolívia, Rafael Correa no Equador, Nestor e Cristina Kirchener na Argentina, Lula da Silva e Dilma Roussef no Brasil e Daniel Ortega na Nicarágua. Neste período, de sensivelmente uma década, «avançou-se mais do que no século anterior», adiantou Luís Carapinha.

Se o reforço das forças populares em cada um dos países alterou a correlação de forças regional, como ficou evidente na criação da Celac, Unasul e Mercosul, as derrotas posteriores – particularmente na Argentina (entretanto revertida com a vitória da Frente de Todos, com Alberto Fernandez e Cristina Kirchner como presidente e vice-presidente) e no Brasil, governado desde há pouco mais de um ano pela extrema-direita – fizeram o mesmo, mas em sentido inverso.

Simbólico desta nova realidade, mais negativa para os povos da região, é o facto de a União de Nações Sul-Americanas (Unasul) ter sido «sepultada viva» e a sua sede em Quito vendida pelo governo de Lenin Moreno, antigo vice-presidente de Rafael Correa, eleito com um programa de continuidade da chamada Revolução Cidadã, que traiu, passando a servir docilmente o imperialismo norte-americano. Ao mesmo tempo, a Organização de Estados Americanos (OEA), conhecida como Ministério das Colónias dos EUA, ganhou um renovado protagonismo.

Unidade é questão decisiva

Foi ainda Luís Carapinha a deixar alguns alertas, constatações e lições sobre a situação no subcontinente latino-americano: a direita está cada vez mais radicalizada e violenta; a unidade é uma questão determinante colocada às forças progressistas, desde logo pela exímia habilidade do imperialismo em «explorar fissuras» (como ficou evidente no caso da Bolívia); e os poderes económico, mediático, judicial e militar estão, no essencial, concentrados nas mãos dos adversários das forças populares.

As experiências da Unidade Popular chilena (1970-73) e da Revolução Bolivariana da Venezuela representam experiências a não esquecer, garantiu o membro do CPPC. É que, afirmou, «não basta o poder popular», o papel das Forças Armadas é fundamental. A União Cívico-Militar, que sustenta o processo democrático e anti-imperialista venezuelano, revelou-se particularmente eficaz até ao momento. Como dizia Hugo Chávez, a Revolução Bolivariana é «pacífica, mas não desarmada».

Da Venezuela falou mais em pormenor o embaixador, denunciando a «férrea ofensiva» de que o seu país é alvo, marcada pela desestabilização e violência, o bloqueio económico, comercial e financeiro ilegal e as sanções económicas, que já causaram mais de 230 mortos, 800 feridos e prejuízos superiores a 30 mil milhões de dólares.

Das acções levadas a cabo pela dita «oposição», tão do agrado dos EUA e da União Europeia, contam-se agressões e assassinatos de líderes políticos e camponeses, incêndios de edifícios, assaltos a bases militares e roubo de armas. Complementadas, no exterior, pelo roubo de empresas, bens e activos financeiros venezuelanos, que impede, por exemplo, o pagamento de tratamentos e operações médicas. «Usam hoje contra a Venezuela as mesmas técnicas utilizadas contra o Chile de Allende», denunciou o diplomata bolivariano.

Relativamente aos «porquês» de tão forte ofensiva contra a República Bolivariana da Venezuela, Lucas Rincón Romero realça a «distribuição equitativa da riqueza nacional», que desde o início norteia o processo bolivariano, num país que detém das maiores reservas conhecidas de petróleo, gás, ouro, níquel e bauxite.

Resistência e solidariedade

A embaixadora de Cuba começou por denunciar a «guerra não convencional que, noite e dia, afecta a América Latina», movida pelos EUA, que querem recolocar a região sob seu controlo e influência. O neoliberalismo, que desde a década de 70 é uma das formas privilegiadas para o conseguir, deixou atrás de si um rasto de desigualdades, pobreza e violência. A vaga progressista deste século resultou precisamente da luta popular contra o neoliberalismo.

Mercedes Martínez referiu-se ainda à política externa internacionalista do seu país, patente nas brigadas médicas que de 1963 até hoje estiveram em 164 países. Se a cooperação com o Equador ou a Bolívia é muito anterior aos governos progressistas de Correa ou Morales, ela é agora interrompida na sequência da traição de Lenin Moreno e do golpe de Estado na Bolívia. Para trás ficam centenas de milhares de consultas, operações e partos realizados pelos médicos cubanos nas comunidades mais pobres desses países. Na Bolívia, aliás, quatro membros da delegação médica cubana foram mesmo presas e violentadas pelos golpistas, sendo posteriormente libertada.

O representante dos Colombianos Pela Paz manifestou solidariedade com as lutas que se travam em toda a América Latina e lembrou que, no seu país, a cada 36 horas é assassinado um líder social. Acusando o actual governo de Ivan Duque de pretender «fazer em farrapos o processo de paz», chamou a atenção para a greve geral de hoje, 21, que tendo motivações económicas é também pela paz e contra os assassinatos.

A Associação de Chilenos em Portugal agradeceu a solidariedade que o seu povo tem recebido no último mês e garantiu que o Chile, ao contrário do que diz o presidente Juan Piñera, não está em guerra, mas sim a lutar pelos direitos após 30 anos de desigualdade e opressão. Até ao momento, houve dezenas de mortos, mais de 100 mil detenções e 250 pessoas perderam a vista fruto de disparos das forças policiais directamente aos olhos.

Da parte do núcleo do PT de Lisboa denunciou-se o «golpe de novo tipo» que ali teve lugar e no qual o poder judicial assumiu um papel decisivo. Garantindo que no Brasil há «muita luta e resistência», o activista realçou que Bolsonaro é apenas uma peça, dispensável até, do processo de fascização em curso no país.

A conferência terminou com os participantes a empunharem cartazes, onde se podia ler «Bolívia: Não ao Golpe», «Chile Despertou! Não à Repressão!», «Colômbia: Respeito pelo Acordo de Paz», «Fim ao Bloqueio dos EUA contra Cuba» e «Solidariedade com a Revolução Bolivariana».