O discurso sobre a participação e a colaboração na rede

Marta Pinho Alves

Um conjunto de discursos contemporâneos considera que novas formas de sociabilidade e de trabalho terão emergido a partir do advento da denominada web 2.0. De acordo com estes, a melhoria e alargamento das condições de acesso à Internet, o desenvolvimento de plataformas online que permitem a conceção e partilha de conteúdos gerados pelo utilizador e as variadas, e cada vez mais simplificadas e menos dispendiosas, aplicações e aparelhos de registo e edição audiovisual, criaram a possibilidade de participação de um número muito vasto de indivíduos – um número inigualado em qualquer outro momento anterior – na definição e construção dos objetos que compõem o seu património cultural e artístico.

Se no decurso dos anos 1990, e ainda durante alguns anos da década seguinte, a questão se colocou no acesso à rede – tornando célebre o debate acerca da ‘divisão digital’ e das medidas a ser tomadas para diminuir o fosso entre os infoincluídos e os infoexcluídos – no momento presente, a reflexão parece situar-se na tentativa de equacionamento da distância entre aqueles que participam efectivamente na rede como criadores de conteúdos ou, pelo menos, como difusores e editores dos mesmos, e aqueles que mantêm com a informação veiculada na rede a mesma relação que tinham com os dados fornecidos pelos media tradicionais, a de meros recetores.

Como a elaboração de conteúdos é efetuada na Internet, mediante interações, partilhas e trocas, o trabalho que daí emerge é observado como resultante da cooperação entre os vários agentes e da conjugação dos seus contributos. Esta noção encerra a ideia de uma renovação do cenário económico e social da produção e circulação cultural e artística que tem vindo a ser entendida como resultando na constituição de um novo tipo de organização. Esta, na perspetiva de alguns, tem o poder de reformar o modelo capitalista convencional, substituindo-o pelo designado ‘capitalismo em rede’ ou ‘capitalismo colaborativo’.

As perspectivas a que se alude assumem que a dominação das indústrias culturais e dos media na definição e criação de conteúdos e dos seus fluxos, vigente durante o século XX, é agora questionada pela acção dos indivíduos em rede que, pressupõem, estão capacitados não só́ para lhe opor possibilidades mais consentâneas com os seus reais interesses e necessidades, mas também para actuar sobre aquelas, conduzindo-as, assim, à redefinição da sua oferta e da relação estabelecida com os destinatários.

No âmbito deste anunciado novo modelo cultural, o consumidor de conteúdos passa a ser entendido como detentor de um papel híbrido, papel esse que resulta da combinação da sua anterior função exclusiva face à indústria, a de recetor, com a de produtor, esta última recentemente adquirida através das aplicações da web. Vários trabalhos académicos têm-se dedicado a analisar a dupla condição do utilizador das plataformas de conteúdos disponíveis na rede e as suas possibilidades de atuação simultânea como criador e recetor. Para a denominar foi recuperado o termo ‘prossumidor’, da autoria de Alvin Toffler, que aglutina os termos profissional ou produtor e consumidor ou cunhados outros, tais como ‘youser’, ‘pro-am’ ou o mais recorrentemente citado ‘produser’, que pretendem destacar o comportamento activo dos indivíduos, substituindo o termo consumidor, habitualmente observado como referente a uma entidade passiva, pelo de utilizador.

(continua)




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