Barragem do Alvito: mais uma vítima do processo de privatizações

Fernando Sequeira

SOBERANIA A barragem do Alvito, a sua privatização e a cedência de sucessivos governos aos interesses dos accionistas da EDP são um exemplo revelador do quão prejudicial ao País é a política de direita, ao mesmo tempo que dá razão às propostas alternativas há muito defendidas pelo PCP.

A valência dominante de Alvito é a armazenagem de água doce

Depois da primeira fase de privatização da EDP, iniciada em 1997, o programa para a construção de novos grandes empreendimentos hidroelétricos foi suspenso, porque à época assim interessava aos novos acionistas (os privados que então foram à privatização), mais interessados em investir em projectos eléctricos de maior rendibilidade e de muito mais rápido retorno do capital investido, do que empreendimentos hidroelétricos, como eram então à época as centrais térmicas de ciclo combinado a gás natural.

O aproveitamento do ainda muito elevado potencial hídrico que o País então possuía (e que, embora em menor escala, ainda possui), permitindo a construção de novos empreendimentos hidroelétricos, pelo nível elevado de investimento que exigiam, e pelo longo período de retorno, não interessavam então aos novos acionistas da EDP.

E isto tendo mesmo em consideração o seu carácter profundamente estruturante relativamente ao sistema electroprodutor nacional.

Em 2007, o governo PS/Sócrates lançou o chamado Programa Nacional de Barragens de Elevado Potencial Hidroelétrico (PNBEPH), no quadro do qual foram a concurso, para atribuição de concessões, dez potenciais empreendimentos hidroelétricos. Destes dez, tiveram interessados oito, tendo sido adjudicados então à EDP três, a saber, Foz Tua (no rio Tua, já construído e em exploração desde 2017), Fridão (no rio Tâmega) e Alvito (no rio Ocreza), não tendo estes dois últimos sido construídos, por manifesto desinteresse da EDP.

Ultimamente, muito se tem falado do putativo empreendimento hidroelétrico do Fridão, mas não pelas melhores razões, razões que em síntese se prendem talvez com uma espécie de conluio estratégico entre a EDP e o Ministério do Ambiente e da Transição Energética, que se traduziu na não construção de tal empreendimento. O presente artigo não vai tratar do caso Fridão, mas da outra barragem do lote adjudicado à EDP e de que esta também se desinteressou, ou seja, da barragem do Alvito – que deveria ter sido construída no rio Ocreza, afluente da margem direita do rio Tejo, que desagua neste um pouco a jusante de Vila Velha de Ródão e muito próximo da barragem de Fratel.

A barragem do Alvito é, de forma muito sintética, claramente aquilo que se designa por um empreendimento de fins múltiplos, isto é, um empreendimento que apresenta diversas valias, designadamente no domínio de armazenagem estratégica de água doce (desde logo para regulação a jusante dos caudais do rio Tejo, para o abastecimento de água às populações e para rega na agricultura, entre outros) e para a produção de energia eléctrica.

Contudo, a grande valia do empreendimento do Alvito encontra-se na sua muito significativa capacidade de armazenagem de água doce na albufeira resultante da construção da barragem. De facto, no quadro dos empreendimentos que constituem o programa do PNBEPH, Alvito apresenta a segunda maior capacidade de armazenagem de água doce, a saber, cerca de 209 hm3, enquanto que Foz Tua, a primeira em capacidade de armazenagem de água doce, apresenta o valor de 310 hm3.

Já no que concerne à sua valia eléctrica, esta é pequena em termos relativos, a saber, 48 MW de potência instalada (cerca de 20,5% de Foz Tua e cerca de 9% de Alqueva) e 62 GWh/ano (valor médio) de energia elétrica produzida.

Albufeira de Alvito enquanto
reserva estratégica de água doce

Portanto, julgamos ser muito claro que a valência dominante e mesmo estratégica deste empreendimento, é a armazenagem de água doce e não a produção de energia eléctrica, embora esta não deva, de forma alguma, ser desconsiderada, pelo que, quando se construir o empreendimento, ele deva ter obrigatoriamente a produção de electricidade.

Este carácter estratégico da valia armazenagem de água doce é valorizado pelo facto de o caudal do Tejo se ter reduzido em cerca de 23% nos últimos anos, no essencial devido à exploração intensiva de agricultura de regadio em Espanha, ainda por cima no quadro de menores precipitações.

De acordo com alguns especialistas, a ausência de uma barragem de albufeira na bacia hidrográfica do Tejo do lado nacional da fronteira, constitui uma enorme vulnerabilidade, e faz com que o país só consiga gerir o caudal do Tejo, quando este já vai sensivelmente a meio do seu percurso em território nacional, ou seja, a partir da albufeira de Castelo do Bode para jusante.

Até aí, estamos completamente nas mãos de Espanha.

Podemos então concluir, que a construção do empreendimento do Alvito, é, não só do interesse regional, mas também e claramente do interesse nacional, dado que a bacia sedimentar do Baixo Tejo é uma zona de eleição para a agricultura, com evidentes reflexos a nível nacional.

Os interesses privados da EDP
versus o interesse nacional

Como já atrás observámos, a EDP desistiu de avançar com a construção do Alvito, tendo, em sequência, perdido a respectiva concessão, assim como a garantia financeira que tinha pago para aceder à concessão.

Coloca-se-nos então a seguinte questão? Por que razão terá desistido a EDP da construção do empreendimento a que tinha concorrido em 2007?

Obviamente, porque não somos a Administração da EDP, não sabemos de forma absolutamente certa e segura quais os reais motivos que levaram à desistência.

Porém, temos, e não somos só nós, indícios muito fortes de que por detrás de tal decisão está o seu enquadramento numa orientação estratégica da EDP, a saber, a que determinou e determina desinvestimentos, ou a não realização de novos investimentos em determinadas geografias, designada ou mesmo particularmente em Portugal, em que pretendem alienar diversos centros eletroprodutores, orientação em que se encaixa harmoniosamente uma orientação de nível tático, esta focada no Alvito, mas não só.

Acresce, relativamente ao Alvito, a sua reduzida valia eléctrica, como já atrás observámos, pois o que verdadeiramente interessa aos acionistas privados da EDP é a produção de electricidade e a sua venda e não o haver ou não haver reservas estratégicas de água doce em Portugal.

Sobre a necessidade do retorno
da EDP à esfera pública

O exemplo que atrás referimos, mais um, numa listagem que já vai longa, mostra-nos de forma clara e inequívoca a completa e insanável contradição entre o caráter privado da empresa prosseguindo uma atividade estratégica, como é o caso da EDP, e o interesse nacional, isto é, o interesse da grande maioria dos portugueses, portanto o interesse de todas as classes e camadas não monopolistas da sociedade.

Este é um exemplo muito importante, face ao cada vez maior protagonismo na economia e na sociedade em geral, da atividade produção, transporte, distribuição e comercialização de eletricidade, a juntar a tantos outros, que têm ocorrido em múltiplas, outrora empresas públicas, de diversos setores da economia, entretanto privatizadas, factos que constituem verdadeiros crimes contra a economia, a soberania e a independência nacionais.

Este, como outros casos, dão total razão ao PCP, quando, no quadro das suas propostas de uma política patriótica e de esquerda, de há muito que reivindica um regresso ao controlo público de todas as empresas atuando em sectores estratégicos, seja no domínio da economia, seja das infraestruturas, seja dos sistemas logísticos, nomeadamente a banca, a energia e os transportes.




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