Uma lição de vida e outra de desportivismo

José Augusto

«Fiz uma coisa vulgar e ela teve repercussão mundial. Isto assusta-me. Dá que pensar em que mundo é que vivemos»

O Campeonato do Mundo de Atletismo, que findou há poucos dias em Doha, capital do Emirado do Catar, deu que falar em Portugal, pelo menos, por duas razões, e ambas bem fortes: fez-nos conhecer um jovem atleta da Guiné-Bissau, de seu nome Braima Suncar Dabó, que está a poucos meses de concluir um curso superior, no Politécnico de Bragança, preparando-se assim para a vida e para ajudar o país que o viu nascer, e o português João Vieira, que, aos 43 anos, conseguiu ser o segundo mais rápido nos 50 quilómetros marcha e arrebatar a medalha de prata. Nunca um atleta daquela idade subira ao pódio em nenhuma das variadíssimas disciplinas atléticas.

O caso do guineense conta-se em poucas palavras: a meio da prova dos 500 metros planos, Dabó aproximava-se da meta ainda esperançado em bater o seu recorde pessoal e do seu país, quando viu um adversário, Jonathan Busby, da quase minúscula ilha de Arruba, do Caribe, em manifestas dificuldades físicas, mal conseguindo manter-se de pé. Dabó desinteressou-se da corrida e ajudou o seu companheiro a cortar a meta.

Entretanto, logo depois, ficou espantado com as honrarias que a imprensa e o público lhe prestaram: «Ainda não percebi o por quê de darem tanta atenção à minha atitude. Fiz uma coisa vulgar e ela teve repercussão mundial. Isto assusta-me. Dá que pensar em que mundo é que vivemos.» Depois do seu acto, Dabó só podia falar como um campeão. E falou.

Quanto à proeza de João Vieira, é espantosa, porque alcançar um segundo lugar numa prova de 50 quilómetros marcha de um «mundial», sabendo-se a acérrima concorrência que hoje existe, só está ao alcance de atletas de eleição. Vieira, que começou a sua carreira internacional no Campeonato Europeu de 1998, apoderou-se desta medalha de prata na sua 11.ª tentativa europeia ou mundial. «Poucos acreditavam que eu pudesse chegar tão longe, mas a verdade é que nunca deixei de sonhar», palavras pronunciadas pelo atleta e transcritas de uma publicação russa da especialidade. E à imprensa portuguesa: «Muitas vezes acordo de manhã e penso que ainda tenho 20 anos e, assim, vou à luta todos os dias.» E mais adiante: «Os resultados saem, com o prazer que sinto nos treinos diários: muitas vezes com esforço, mas trabalhei todos os dias para estar no “mundial”. Agora, acho que mereço um bom descanso.»

É evidente que são conhecidos outros casos de longevidade, mas poucos numa disciplina tão exigente como o atletismo.

Um caso que sempre vem à baila, quando se fala de longas carreiras desportivas, é o do futebolista inglês Stanley Matthews, um cultor, como o pai pugilista, da disciplina e da vida saudável. Jogou até depois dos 50 anos de idade no campeonato britânico. Existem duas estátuas consagradas a este fantástico futebolista. Numa placa afixada numa delas, no coração da sua Hanley natal, pode ler-se: «Seu nome simboliza a beleza do jogo, sua fama é internacional e atemporal, seu espírito desportivo e modéstia universalmente aclamados. Um jogador mágico, do povo, para o povo.»

Buffon, guarda-redes da Juventus, é quarentão e parece não ter perdido a agilidade e reflexos, e, por falar em guardiões, temos que referir o único que foi considerado o melhor da Europa: o soviético Lev Iachine, que se despediu do desporto com 42 anos feitos. Michael Proud’homme dizia que no futebol há um tempo antes de Iachine e um depois de Iachine, porque o «aranha negra» revolucionou o modo de defender. De elemento passivo, entre os postes, passou a ser um jogador activo, integrando-se no jogo ofensivo da equipa.



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