Na defesa da paz os povos têm a última palavra

Gustavo Carneiro

PAZ O primeiro Congresso Mundial dos Partidários da Paz, realizado em Paris e Praga entre 20 e 26 de Abril de 1949, foi um momento alto da construção do movimento da paz unitário, democrático, antifascista e anti-imperialista nascido após a Segunda Guerra Mundial. Contribuiu decisivamente para opor uma poderosa barreira às pretensões mais agressivas do imperialismo, forçando-o a recuar.

«Declaro aberto o Congresso Mundial dos Partidários da Paz.» Foi com estas palavras que o prestigiado cientista e resistente antifascista Frédéric Joliot-Curie (galardoado em 1935 com o Prémio Nobel da Química) deu início aos trabalhos na Salle Pleyel, conceituado espaço cultural da capital francesa. Foi preciso esperar vários minutos até que pudesse prosseguir o seu discurso, tantos e tão vibrantes eram os aplausos.

Ali estiveram, durante vários dias, mais de 2000 delegados, provenientes de 72 países, (quase tantos quantos tinha o mundo, então), alguns dos quais recentemente libertados de séculos de opressão colonialista e imperialista. Aqueles que, vindos de alguns países da Europa Central e Oriental e da Ásia, foram impedidos pelas autoridades de entrar em França, rumaram de imediato a Praga onde puderam debater as mesmas teses e resoluções que ali estiveram em apreciação.

Nas duas cidades estiveram trabalhadores, intelectuais, artistas, estudantes, camponeses, religiosos, deputados,governantes, dirigentes e activistas políticos, sindicais e associativos. Muitos vestiam trajes tradicionais das suas terras ou ostentavam, orgulhosos, fardas dos movimentos de resistência antifascista que integraram durante a Segunda Guerra Mundial.

Nas suas memórias, o então secretário-geral do Partido Comunista Francês, Maurice Thorez, recorda precisamente o contributo ímpar das organizações e militantes da Resistência para o êxito do primeiro Congresso Mundial dos Partidários da Paz. E destaca as «caravanas» vindas de todo o país para participar nos trabalhos do Congresso e nas diversas iniciativas que se realizaram por esses dias em Paris, algumas das quais constituíram impressionantes manifestações de massas.

O cartaz do Congresso foi desenhado pelo pintor espanhol Pablo Picasso e no decurso dos trabalhos o músico norte-americano Paul Robeson cantou temas imortalizados pela resistência republicana na Guerra Civil espanhola. O poeta chileno Pablo Neruda, perseguido pelo governo do seu país, conseguiu fintar a apertada vigilância e comparecer, sendo ali calorosamente saudado.

O Congresso designou um Comité Permanente dos Partidários da Paz, presidido por Joliot-Curie, e aprovou vários documentos, entre os quais o Manifesto (ver caixa), onde ficaram plasmados os objectivos e princípios que nortearam o Congresso e o movimento que dele emanou.

Anos de chumbo

O Congresso Mundial dos Partidários da Paz não foi uma iniciativa isolada. Constituiu, sim, um momento alto de um processo iniciado menos de um ano antes, no Congresso Mundial dos Intelectuais pela Paz (realizado na Polónia em Agosto de 1948), que culminaria em finais de 1950, com a constituição do Conselho Mundial da Paz. O seu objectivo central era o de, à escala planetária, erguer uma poderosa barreira às pretensões mais agressivas do imperialismo norte-americano, que nesses anos não olhava a meios para impor o seu domínio económico, político e militar nos quatro cantos do mundo.

A grande aliança que derrotou o nazi-fascismo, assente na União Soviética, Reino Unido e Estados Unidos da América, não resistiu mais do que uns meses. Em Março de 1946, o já então ex-primeiro ministro britânico, Winston Churchill, dava o pontapé de saída na chamada Guerra Fria com o discurso que proferiu em Fulton, nos EUA, tendo o presidente norte-americano Harry Truman ao seu lado. Este, um ano depois, lança a Doutrina Truman, para conter e repelir «o comunismo» onde quer que ele se manifestasse e fosse qual fosse a sua expressão. «Comunismo» era, então, tudo o que pusesse em causa os interesses do imperialismo.

O Plano Marshall e a NATO foram os passos seguintes da estratégia do imperialismo no pós-Guerra: o primeiro colocando os países da Europa Ocidental economicamente (logo, politicamente) subjugados aos EUA e a segunda perpetuando a presença militar norte-americana no continente. Nestes anos, a tensão militar atingiu níveis perigosíssimos, em Berlim como na Coreia. A retórica militarista, a corrida aos armamentos e a chantagem nuclear foram acentuadas até ao limite.

A criação do movimento da paz foi uma resposta das forças progressistas e democráticas às tentativas do imperialismo de desencadear uma nova guerra mundial, dirigida contra a União Soviética, as democracias populares nascentes e, em geral, contra os povos que lutavam pela sua emancipação social e libertação nacional. A oportunidade e justeza das causas que abraçou e das campanhas que lançou conferiram-lhe um carácter profundamente unitário.

O Congresso de Abril de 1949 nasceu do Apelo lançado a 25 de Fevereiro de 1949 pelo Secretariado Coordenador Internacional dos Intelectuais pela Paz e pela Federação Democrática Internacional de Mulheres. Nele, os promotores dirigiam-se a «todas as organizações democráticas que têm como interesse principal a defesa da paz e que são dedicadas ao progresso – sindicatos, movimentos de mulheres e da juventude, organizações camponesas, cooperativas e grupos religiosos, organizações de cientistas, escritores, jornalistas, artistas e políticos democráticos», apelando a que se manifestassem pela paz.

Em menos de 60 dias, tinha sido assinado por 18 organizações internacionais, mais de um milhar de organizações de âmbito nacional e cerca de 2900 figuras públicas dos vários países do mundo.

Alarga-se o campo da paz

Se o primeiro Congresso Mundial dos Partidários da Paz foi já expressão do movimento da paz que ganhava forma em vários países, ele deu um contributo decisivo para o seu desenvolvimento e afirmação. O Comité Permanente dos Partidários da Paz, aí constituído, lançou em Março de 1950 o Apelo de Estocolmo, pela proibição das armas nucleares, primeira e particularmente bem sucedida campanha internacional deste movimento: centenas de milhões de pessoas assinaram-no e em torno dele constituíram-se, em diversos países, organizações vocacionadas para a defesa da paz.

Na viragem da década, a luta pela paz mobilizava os povos do mundo. Ainda em Março de 1949, por toda a Itália, têm lugar grandes manifestações contra a adesão do país à NATO. Em França realizam-se marchas pela paz e os trabalhadores dos transportes, mobilizados pela CGT, recusam-se a transportar armas para a Indochina. Em 1952, milhares de franceses protestam contra a presença no país do general norte-americano Ridgway, acusado de utilizar armas bacteriológicas sobre populações na Coreia. As campanhas do Conselho Mundial da Paz eram acolhidas com entusiasmo nos quatro cantos do mundo.

Em Portugal, apesar da repressão fascista, os activistas da paz divulgaram as conclusões do Congresso de Paris e Praga e levaram a cabo diversas iniciativas. Em Agosto de 1950 foi constituída a Comissão Nacional para a Defesa da Paz, que integrava personalidades como Egas Moniz, Ruy Luís Gomes, Ferreira de Castro, Virgínia de Moura, Fernando Lopes-Graça ou Maria Lamas, entre muitos outros.

No final de 1950, Manuel Valadares integrava o lote de 221 elementos que constituíram o primeiro Conselho Mundial da Paz. Maria Lamas e Ruy Luís Gomes acompanhá-lo-iam pouco depois.

O movimento mundial da paz, poderoso e abrangente, tornava-se então um protagonista de primeiro plano na política internacional. Juntamente com o campo socialista, os partidos comunistas, os movimentos operário e de libertação nacional, forçaram o imperialismo a refrear os seus ímpetos mais agressivos. A sua constituição, desenvolvimento e afirmação constituiu uma importante vitória dos povos e dos seus sectores mais avançados.

Lições que permanecem

O processo de preparação e realização do primeiro Congresso Mundial dos Partidários da Paz e de construção do movimento mundial da paz comporta lições úteis para o presente. Nessa altura, marcada por uma intensa polarização política, foi possível unir em defesa da paz e do desarmamento amplos sectores sociais e personalidades das mais variadas tendências político-ideológicas e confissões religiosas. As palavras proferidas há 70 anos por Joliot-Curie – «a paz é assunto de todos» – tiveram então materialização prática.

A situação hoje é muito diferente da que se vivia nessa época, mas os perigos para a paz não são menores. Os EUA, a NATO e os seus aliados desencadeiam em todo o mundo uma violenta acção belicista: promovem guerras de agressão, ameaças e chantagens contra estados soberanos; agravam a tensão e retórica militaristas; aumentam as despesas militares e intensificam a corrida aos armamentos (incluindo nucleares); espalham bases e instalações militares e frotas navais em todos os continentes, oceanos e mares e, com particular incidência, junto às fronteiras da Federação Russa e da República Popular da China.

O imperialismo é insaciável e a guerra está na sua natureza. Mas se há algo que a história das últimas sete décadas mostra é que os povos têm sempre a última palavra. Firmeza, audácia e unidade são hoje – como o foram há 70 anos – o caminho da vitória

Princípios, causas e valores

«(…) Nós somos pela Carta das Nações Unidas, contra todas as alianças militares que anulam esta Carta e conduzem à guerra.

Nós somos contra o fardo esmagador dos gastos militares responsáveis pela miséria dos povos.

Nós somos pela interdição das armas atómicas e dos outros meios de extermínio em massa de seres humanos, exigimos a limitação das forças armadas das grandes potências e o estabelecimento dum controlo internacional efectivo da utilização da energia atómica para fins exclusivamente pacíficos e para o bem da humanidade.

Nós lutamos pela independência nacional e a colaboração pacífica entre todos os povos, pelo direito dos povos a determinar o seu futuro, condições essenciais para a liberdade e a paz.

Nós opomo-nos a todas as tentativas que, com o propósito de abrir caminho à guerra, procuram restringir e em seguida suprimir as liberdades democráticas. Nós constituímos um bastião global da verdade e da razão; queremos neutralizar a propaganda que prepara a opinião pública para a guerra.

Nós condenamos a histeria belicista, a pregação do ódio racial e da inimizade entre os povos. Preconizamos a denúncia e o boicote dos órgãos da imprensa, produções literárias e cinematográficas, personalidades e organizações que fazem a propaganda para uma nova guerra.

Nós, que selámos a unidade dos povos do mundo, exercermos os nossos esforços conjugados em prol da Paz. Na nossa determinação de permanecer vigilantes, devemos estabelecer um Comité Internacional para a Defesa da Paz, composto por homens de cultura e representantes de organizações democráticas. (…)»

 

in Manifesto do Congresso Mundial dos Partidários da Paz, Abril de 1949