A nossa literatura, com algumas excepções relevantes (Camões, Eça, Pessoa, Saramago) é pouco divulgada, e conhecida, no Brasil, fora dos círculos universitários. De igual modo, a actual literatura brasileira permanece, para a grande maioria dos leitores portugueses, um quase deserto, que nem nomes como João Ubaldo Ribeiro, Chico Buarque ou Nela Piñon, conseguem contornar essa árida realidade.
Longe vão os dias em que autores como João Guimarães Rosa, com esse épico canónico que é Grande Sertão: Veredas, o neorealismo tropicalista de Jorge Amado, ou os poemas de Vinícius, de Drumond e de Cecília Meireles que eram, entre nós, recitados de cor, faziam parte das nossas estantes e eram lidos, citados e tertuliados como se autores «muito cá de casa».
A invasão da literatura anglo-saxónica, a dependência das nossas editoras da capacidade de marketing que as grandes editoras ianques detêm a nível planetário, moldaram os gostos, subrepticiamente instigados, para que também no território da literatura essa visão ideológica e redutora do mundo, veiculada pela cultura popular (música, cinema, jogos de computador, séries televisivas), chegasse à ficção por forma a condicionar imaginários aparentemente menos influenciáveis.
Mas nem tudo estará perdido, ainda existem nacos de boa literatura fora desses circuitos. Chega-nos do Brasil, via prémio Leya, e por esta publicado, um poderoso e inesperado romance: Torto Arado, de Itamar Vieira Junior. Estamos, com este texto, no ambiente ficcional de Graciliano Ramos e Adriano Suassuna (e de algum Jorge Amado) e da análise sociológica de Gilberto Freyre em Casa Grande e Senzala, num Brasil que arrasta ainda – por desinteresse dos poderes, pelos anos de feroz ditadura, por cumplicidades corruptas –, os restos feudais da administração colonial.
Itamar descreve-nos, numa linguagem fluente e rica, num português culto pautado por vocábulos crioulos, onde o realismo fantástico sul americano deixou traços, o Brasil da exploração sem limites, dos jagunços, dos coronéis, do trabalho escravo. Um território, o grande sertão da Bahia, onde os filhos e netos de escravos ainda vivem em condições sub-humanas, dependentes dos humores e da ganância dos senhores das roças, sujeitos à miséria mais absoluta, trabalhando de Domingo a Domingo sem qualquer remuneração ou direitos sociais, tendo apenas como forma de sobrevivência um casebre de barro, que se esboroa com as chuvas, e uma pequena parcela de terreno onde cultiva o necessário ao seu parco sustento; dos homens que morriam no garimpo, na ânsia de encontrar a pedra brilhante que lhes mudaria a vida. Em Água Negra «vivíamos como gado, trabalhando sem ter nada em troca, nem mesmo o descanso» (p.134).
Torto Arado é a saga da família de Zeca Chapéu Grande, curador na roça Água Negra, líder espiritual, vivendo e suprindo as maleitas dos deserdados entre rezas, encantados, incenso, xaropes de raízes; de duas irmãs, Belonísia, a que um acidente na infância deixou sem língua, e Bebiana, que casará com Severo. Será ele, Severo, o instigador, o que levará o povo à luta e à revolta. Pagará com a vida essa audácia, mas a realidade do povo de Água Negra não voltará a ser a mesma.
Itamar descreve de forma exemplar as paisagens onde a seca tudo devasta, a chuva arrasa a terra e as colheitas, a fome e a morte caminham pela terra gretada, a natureza agreste que sujeita os homens e os bichos às maiores privações; a luta dos trabalhadores de Água Negra pelo direito ao seu pedaço de chão, uma nesga a que possam chamar sua, um tecto que os abrigue com segurança, uma casa de tijolo e telha como deve ser a morada das humanas gentes, mesmo estas que são netos de escravos e andam à procura de um sentido digno e justo para as suas vidas. E de poderem ser, finalmente, livres.
Um belíssimo e amargo romance que nos traz o Brasil profundo, o épico clamor dos que trabalham e sofrem nesse espaço imenso. Gente que após a esperança que os governos de Lula e Dilma lhes devolveu, vivem de novo sob o cutelo da usura, de um Torto Arado.
Torto Arado, de Itamar Vieira Junior – Prémio Leya 2018