Uma experiência prática de serviço público
O Dia Mundial do Teatro deveria celebrar a importância do Serviço Público Artístico
O exercício do Serviço Público Artístico deveria constituir a condição básica e imprescindível para fundamentar o apoio do Estado à criação teatral. E a este essencial Serviço Público, ferramenta para «a compreensão das coisas do mundo», como dizia Jean Vilar, não basta invocá-lo; é preciso defendê-lo pela prática, como exemplo e modelo. Ele decorre de uma relação de proximidade com os públicos através de uma política de reportório, continuada e ininterrupta, exigente em termos da sua qualidade intrínseca em tudo avessa ao comercial, conjugando clássicos, contemporâneos e uma dimensão experimental.
Com estes pressupostos e perante o carácter destrutivo e assassino do sistema produtivo da sociedade capitalista, materializado, neste caso, em crescentes agressões ambientais, o Teatro da Rainha avançou para a montagem de um espectáculo para a infância, tendo como ponto de partida a poluição dos oceanos pelo plástico, que constitui hoje uma grave ameaça devido à concentração de enormes áreas de detritos por efeito das correntes e marés, contaminação da cadeia alimentar, intoxicação e morte das espécies.
Com um cenário-ilha construído sobretudo com elementos de lixo recolhido numa das praias do Oeste, surgiu assim 2 Narizes num Mar de Plástico, uma abordagem às técnicas tradicionais do jogo físico e linguagem gestual dos palhaços (na antinomia circense do rico/pobre – um deles todo mandão, o outro quase afogado), com improvisações sobre um guião que, como assinala o programa, «se foi transformando porque num trabalho de grupo é assim, cada um traz a sua ideia e vamos decidindo o que nos parece mais belo e adequado».
Contrariando os tiques da moda de certas tendências marcadas pela diletância pedante e frívola, a aposta centrou-se na presença alargada em cena tendo, até agora, realizado 49 representações para 2165 espectadores, sendo que em Fevereiro passado aconteceram 31 récitas para escolas e público em geral. O espectáculo cumpriu com as responsabilidades da companhia residente em Caldas da Rainha, congregando até público vindo de localidades vizinhas e realizou digressão (uma série de representações no O´Culto da Ajuda – Centro de Música Contemporânea e Festival Periferias, em Sintra) que continuará.
Para lá da componente didáctica importou principalmente alcançar a diversão e reflexão do público infanto-juvenil: no final, os actores interpelavam o futuro que são as crianças e estas tinham o direito à palavra, deixando elas próprias alertas, manifestando a opinião sentida, interrogando, relatando vivências numa experiência gratificante, em que o riso e alegria libertadora, em plena fantasia poética, são a melhor paga.
Numa altura em que se comemora o Dia Mundial do Teatro, conviria que essa celebração fosse a da importância do Serviço Público, com meios adequados, da presença equilibrada no território, da equacionação sensível do real em assembleia visando o fomento da consciência crítica, da luta contra o obscurantismo e no acesso ao saber e à cultura (a que a Direita chama «marxismo cultural»), do Teatro como factor de emancipação, estruturante da democracia em acto que cria horizonte e combate a perversão do mercado divinizado, e não o do favorecido pelo poder, do pontual mediatizado e alienado de uma função social.