Do Entrudo ao Carnaval, o mundo transfigurado
TRADIÇÃO Nas avenidas de algumas das cidades de Portugal está prestes a instalar-se uma confusão de hemisférios. A São Pedro, geralmente acusado de presidir à queda das águas aéreas, caberá decidir se o Carnaval será seco ou encharcado, mantido ou adiado.
Na origem do Carnaval está o Entrudo levado para terras americanas por colonos portugueses
O dado é importante, embora seja apenas mais um a confrontar o cortejo com o paradoxo das vestes – ou da sua ausência –, mais próprias de final de estação estival do que da lusitana época em que o inverno ainda aconselha o uso do cachecol. Esta tradição de corso na avenida é festa de importação, mas não deixa de ser filha do Entrudo português. Diz quem sabe que na origem deste Carnaval que agora por cá se estende esteve o velhíssimo Entrudo, levado para terras americanas por colonos portugueses. As primeiras folias em terras tropicais terão surgido em anos de 1600, incorporando elementos do Entrudo europeu, como no caso do desfile de caixões vazios simbolizando o enterro do Inverno, de que adiante se falará. Dos sinais que, desgarrados, foram plantados lá longe, apropriaram-se as gentes dali dos de melhor serventia: os da brincadeira, do jogo erótico, do destempero de palavras e de acções.
Achado o velho Entrudo em terra de gente de tão diversa condição foi-se deixando permear por traços musicais e coreográficos, tradições e vontades que depressa deixariam para trás a matriz original. No novo Entrudo brasileiro do século XVII já não era só a Europa agro-pastoril quem saía à rua – a memória distante tinha-se fundido com as culturas autóctones e africanas que, escapando à repressão colonialista, surgiam agora, encantatórias, a tomar conta do terreiro. O Carnaval era agora coisa do povo brasileiro, génio fugido da lamparina colonial, insurrecto e sedutor, concretizando os desejos de festa de escravos e assalariados, nos poucos dias em que a liberdade era conquista.
O Entrudo tinha, de novo, feito das suas, revirando a ordem estabelecida em favor de uma nova ordem na qual, ainda que por poucos dias, o espaço público mudava de mãos. Instalada a corte portuguesa no Brasil, em inícios do século XIX, ainda se tentou pôr cobro ao despautério, a golpes de desfile parisiense e demais sofisticações, talvez a elegância burguesa dos desfiles mascarados diluísse o destempero feliz do Carnaval da gente comum.
Para melhor resultado juntou-se-lhe a repressão policial, mas os foliões não se amedrontaram e os descendentes dos Pierrots, das Colombinas e Arlequins mudaram de lado, reinventando no chão tropical os encantos da sua «commedia dell'arte», misturando-os com as danças e os cantos dos descendentes dos escravos e dos demais deserdados.
Dito o que atrás ficou dito, não se sabe se daqui a duzentos anos não estará outro alguém a comentar, nestas mesmíssimas páginas, as sortes de um Entrudo que em Carnaval se transfigurou, e Entrudo regressou a terras lusitanas para espalhar por todo o lado os encantos de sambas com sotaque português e menos vulnerável trajar. Não há mal nenhum na rendição dos costumes – a História é sempre a vontade dos povos – mas mandam a inteligência humana e a utilidade em conhecer o lugar de onde provimos, que se procure a razão dos acontecimentos em argumento mais sustentado do que o da «globalização», explicação que vai dando para tudo o que seja pôr a Humanidade inteira a alinhar pela lei do mais forte, também nos lados da Cultura.
Os Bailinhos da Terceira
Entrudo é insurreição, ventre gerador do burlesco e do licencioso, subversor de regras e de hierarquias. «No Carnaval ninguém leva a mal», diz-se por aí mas é conforme. Nos palcos das colectividades da ilha Terceira, por exemplo, todos os anos sai à rua meia centena de Bailinhos do Entrudo que são, afinal, autos de parecença vicentina, mestres por igual na capacidade de determinar as barcas por que se hão-de distribuir os protagonistas da sociedade de classes.
Em tempos antigos os Bailinhos apresentavam-se nos terreiros da Ilha, juntando-se o povo à sua espera. O inaugurador da apresentação era o Velho da Arreda, responsável por encontrar espaço para a montagem da cena; na maioria dos casos o Velho acumulava funções de Ratão, improvisador e comentador do enredo, a quem se permitia interromper as falas, desafiar o público, asneirar à vontade em palavras e gestos desde que o desempenho cativasse a atenção do público. O Velho da Arreda perdeu função, equipada que a Ilha está de salões associativos capazes de dar palco à função e assento ao público. Já o Ratão foi sendo, por um lado, vítima da especialidade da função, a exigir do titular dotes de improvisador e espalha-brasas; e, por outro lado, «vítima» da democracia. Nos tempos do fascismo, o enredo dos Bailinhos era obviamente submetido ao exame da Censura. Não tendo o que estivesse escrito como escapar ao lápis azul, já o que fosse dito não tinha como ser desdito. O Ratão tinha de ser hábil na função cómica mas também na de apagador do lápis azul, resgatando para a vivência colectiva o traço inquietador que é o sangue do Entrudo.
Os Bailinhos envolvem oito pares de Dançarinos, que são também o Coro, cabendo-lhes a movimentação coreográfica que pontua o texto dramático; os músicos, banda sonora do Bailinhos, que não entram em cena, a menos que os Dançarinos acumulem aquelas funções; os actores – os necessários; e o Mestre, ou Puxador, que marca com um apito a alternância entre danças e cenas. Calcorreiam a ilha inteira vestidos a preceito e hão-de subir ao palco desenrolando o «assunto», geralmente dito em verso, urdido para ser retrato burlesco dos empecilhos da vida comunitária, ali submetidos ao julgamento galhofeiro do povo das freguesias. Os Bailinhos do Entrudo não fazem parte dos roteiros do turismo do pitoresco, por si só uma quase-garantia de preservação do seu papel social – a reflexão comunitária nunca se deu bem com as necessidades dos mirones.
Falar de coisas sérias a brincar
Do lado continental, mesmo que a intenção se mantenha, o Entrudo tem outros modos e nomes. Chama-se «Enterro do João», «Serração da Velha», «Queima do Galheiro», disputa de «Compadres» e «Comadres» e outras coisas mais, tantas quantas as vontades dos foliões e respectivas heranças. Cada terra com seu uso e, destes, há os que se mantêm, os que desapareceram já e os que vão sendo ressuscitados pelos inconformados com a «carioquização» do Entrudo.
A verdade é que há poucas coisas mais sérias do que o exercício da brincadeira, desde a aprendizagem do mundo, de que se serve a infância, até à folia que acompanha a Festa, no Entrudo como em qualquer outra. Pródigos são os humanos na invenção de processos de questionar a realidade – questionando-se ao fim e ao cabo também – neste percurso milenar à procura da igualdade das condições, de que o Entrudo é agente transformador.
É que a luta pelo progresso, no seu caminho intrincado, faz uso em partes iguais da veemência e da ironia, da eloquência e do sarcasmo, do programa concreto e do jogo simbólico.
Ainda em meados do século passado, em lugares de Rio Tinto, andava o povo em agitação funerária, mas sem pranto de que dó se pudesse ter. Eram coisas do Entrudo e o defunto era um «João» de recheio de palha, roupas andrajosas e botas de cano alto. Uma máscara em vez de rosto, fios de sisal na cabeleira e um vistoso falo de serradura, no lugar correspondente, completavam o manequim. O «Enterro do João» retomou-se há poucos anos na Triana em que foi costumeiro, mas já sem o fulgor de outros tempos. Ainda assim procurou-se reconstituir o essencial da celebração – o velório, palco da convivência do povo e dos prantos da «viúva», o cortejo fúnebre e, finalmente, a leitura dos responsos e do testamento do João.
Noutros lugares do Continente o Entrudo é insultado e apupado, quando não julgado pelas faltas que na comunidade se cometeram e ali são vertidas para o pobre «João», que expiará na fogueira as culpas que lhe foram postas. Mas em Triana e em terras de semelhante costume «nenhum julgamento parodial estabelece os crimes do “João”, e nenhuma acusação directa é contra ele formulada; em vez de censurar a sua vida e reclamar o seu castigo, o consenso público lamenta e chora a sua morte, testemunha-lhe, em actos e palavras, sentimentos de estima e simpatia e absolve-o das suas faltas; enquanto que, pelo seu lado, ele deixa legados para melhoramentos públicos cuja concretização demora, distribui generosamente os seus grotescos haveres»1. Enterro propriamente dito não haverá. Em vez da terra usa-se o fogo, competente na expiação de todas as culpas, pelas diversas más razões de que a História se lembra, desde os rituais pagãos ao mais recente Santo Ofício.
Disse-se culpas mas é de destinos que se trata. Por isso convergem nas celebrações do Entrudo as vontades mais óbvias e as mais secretas, desde a do pão à da licenciosidade, uma e outra garantes da manutenção da vida. Muitas outras se lhes juntarão – se não em possibilidade, pelo menos em desejo.
Uma sociedade que se transfigura
Não se acabará aqui o assunto. O Entrudo português conta histórias que, para além do encanto do próprio enredo, recuperam para o conhecimento geral a explicação da existência das sociedades, da denúncia das desarrumações sociais, do benefício do excesso nos assuntos do corpo, que são os da natureza humana. E veste-se de trapos e transfigura-se em máscaras nas quais não se esconde – antes se revela. O Entrudo conta histórias que são as da conquista, pelas moças, dos sinais que permaneceram masculinos até perderem sentido numa terra em que se reivindica paga igual para trabalho igual, acesso igual aos lugares de igual dignidade.
O Entrudo nunca foi – nem no Brasil, nos lugares em que permanece Carnaval – um desfile de bonecos na avenida, o povo a ver-passar de mãos nos bolsos. O Entrudo para ser Entrudo é mais como o poema «Mataram a Tuna» do Manuel da Fonseca, quando abana os que ali estão atirando-lhes «Ó meus amigos desgraçados / se a vida é curta e a morte infinita / despertemos e vamos /eia! /vamos fazer qualquer coisa de louco e heróico / como era a Tuna do Zé Jacinto / tocando a marcha Almadanim!».
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1Ernesto Veiga de Oliveira, “Subsídios para o estudo do Entrudo em Portugal”, Lisboa, 1995.