O capitalismo não tem solução!

MARXISMO-LENINISMO Nem o capitalismo tem solução para as suas contradições fundamentais, as suas crises e a queda tendencial da lucratividade, nem os trabalhadores assistem de braços cruzados a vê-lo arrastar a humanidade para a barbárie.

Che Guevara chamou a O Capital «um monumento à inteligência humana»

O Capital é a obra magna de Karl Marx. A obra de uma vida. Marx dedicou quarenta anos ao estudo da economia, dos quais cerca de trinta a pensar neste livro e mais de um quarto de século a escrevê-lo. A versão final do projeto ficou constituída por três livros, com a exposição teórica, e um quarto, dedicado à história das ideias económicas. Em vida, Marx apenas conseguiu publicar o primeiro. Os outros dois foram publicados postumamente pelo seu colaborador e devotado amigo, Friedrich Engels. O quarto, intitulado Teorias acerca da Mais-Valia, apenas depois da morte de Engels.

Da edição do primeiro livro comemorámos, em 2017, os 150 anos. Os restantes volumes não estavam prontos para publicação. Consistiam num amontoado de cadernos manuscritos, de rascunhos, às vezes em estado muito embrionário, incipiente e fragmentado, de onde Engels, seguindo as indicações deixadas pelo amigo, com grande zelo e paciência, extraiu, ordenou e organizou o segundo e terceiro livros.

Marx viveu e escreveu O Capital com grandes dificuldades materiais e financeiras. Assistira, impotente, à doença e morte de três filhos (além de um recém-nascido), dos quais um rapazinho, já de oito anos, a quem se afeiçoara muito.

Além disso, Marx não era apenas um teórico. Era também um militante, um ativista político. A par do estudo, da reflexão, da redação da sua obra, desenvolveu uma muito intensa atividade política. Nada o ilustra melhor que o facto de ter sido um dos fundadores e o principal dirigente da Associação Internacional dos Trabalhadores (1864-1876), que ficou conhecida na história como a Primeira Internacional.

Aprender para transformar

Esquematicamente, pode-se considerar como a «versão canónica» de O Capital os três primeiros livros, com a teoria organizada de maneira a que o primeiro incide sobre a produção do capital, o segundo sobre a circulação do capital e o terceiro como que a unidade dos dois processos, a reprodução global do capital e da sociedade capitalista.

Trata-se de uma obra muito rica sob muitos pontos de vista. Designadamente das ciências sociais, desde logo da economia, mas também da política, da história, da sociologia, da filosofia. Até da literatura, visto que Marx escrevia maravilhosamente. Che Guevara chamou-lhe um monumento à inteligência humana.

O Capital é uma obra científica, que requer estudo e perseverança. Não é um tratado nem um manual de economia política. É aquilo que o seu próprio subtítulo indica: uma crítica da economia política do seu tempo. Marx vai buscar à economia política clássica o melhor que esta havia produzido, muito especialmente a dois grandes economistas, respetivamente do século XVIII e da viragem para o século XIX, Adam Smith e David Ricardo. Adota a teoria do valor-trabalho e utiliza os seus conceitos, que revoluciona, para erguer um poderoso edifício intelectual, onde demonstra e apresenta as suas descobertas, particularmente sobre a natureza da exploração capitalista.

Simultaneamente homem de ciência e de ação, teórico e prático, Marx não estava apenas interessado em investigar, em compreender, em explicar, que são os objetivos da ciência. Queria, acima de tudo, aplicar, intervir e transformar a realidade social. Era já este o sentido de uma famosa tese que enunciara enquanto jovem, a de que os filósofos têm apenas interpretado o mundo, quando a questão é transformá-lo. O objetivo de Marx era fornecer instrumentos concetuais, de análise, de conhecimento e de compreensão da realidade social para, coletivamente, organizadamente, podermos intervir nela, podermos transformá-la.

Livro primeiro

No livro primeiro, que foca nas questões da produção capitalista, temos fundamentalmente capitalistas de um lado, os detentores dos meios de produção, das fábricas, das máquinas, das matérias-primas, e operários do outro, detentores livres das suas forças de trabalho, mas que, despojados das condições materiais da sua aplicação, sem meios nem objetos de trabalho, são obrigados a vendê-la àqueles, aos capitalistas. Dois grupos humanos, separados pelo lugar que ocupam no sistema de produção social, em que uns não produzem e outros produzem, separados pela relação com os meios de produção, que uns possuem e outros não possuem, separados pelo papel que desempenham na organização social do trabalho, em que uns dirigem e outros são dirigidos.

Marx explica a constituição, designadamente a partir do feudalismo nas sociedades europeias, destas duas classes. Como por um lado se reúnem os meios financeiros para os empreendimentos capitalistas, e se criam os empresários modernos, como por outro se desvinculam os produtores das suas condições de produção, designadamente da terra, e se criam os proletários modernos (a chamada acumulação primitiva).

Mas o fundamental do livro primeiro não são as explicações históricas, mas as análises estruturais da forma de organização e de funcionamento da produção capitalista, sem a qual não poderia subsistir a sociedade capitalista.

Marx vai introduzir a distinção entre o trabalho concreto, diverso por natureza, meios e finalidade, e o trabalho abstrato, o dispêndio geral de força de trabalho humana, o gasto de energias humanas, que existe em cada trabalho concreto, e vai relacionar esta distinção com o duplo caráter da mercadoria, o seu valor de uso, a sua utilidade, e o seu valor de troca, a quantidade de outras mercadorias, ou de dinheiro, que se trocam por ela. Explica como a substância do valor das mercadorias é o trabalho humano abstrato e como para sua medida se pode tomar o tempo de trabalho. Mostra como a lei do valor, de que as mercadorias se trocam segundo as quantidades de trabalho socialmente necessárias para as produzir, é, bem compreendida, uma lei de distribuição dos recursos humanos e materiais (do «trabalho vivo» dos operários e do «trabalho morto» materializado nos meios de produção) no interior da sociedade.

O desenvolvimento das categorias, extraídas da análise da troca das mercadorias, vai conduzir Marx a descortinar, muito especialmente, a necessidade, o significado, o caráter endógeno e o papel do dinheiro, em que a economia clássica se tinha enredado com múltiplas confusões e inconsistências.

Com a descoberta da mais-valia, um dos seus maiores contributos, revela que a fonte dos lucros dos capitalistas é a mais-valia arrancada aos operários, que provêm de estes criarem para os capitalistas, nas suas jornadas de trabalho, um valor superior ao valor que recebem dos capitalistas nos seus salários. De serem obrigados a trabalhar mais tempo do que o tempo em média necessário para se produzir os meios de subsistência que podem adquirir com os salários (cujo valor determina o valor da força de trabalho).

O segredo do capital, valor que é adiantado para gerar ainda mais valor, é a apropriação da mais-valia e consiste, afinal, numa relação social de exploração. É crucial distinguir entre o capital constante, investido na compra de meios de produção, cujo valor é transmitido ao produto, e o capital variável, investido na compra de mão-de-obra, que cria novo valor. Só esta parte variável do capital gera mais-valia, porque é ela que adquire a força de trabalho, capaz de criar mais valor do que o seu próprio valor.

Com a teoria da mais-valia, todos os aspetos fundamentais da dinâmica de desenvolvimento da sociedade capitalista começam a tornar-se inteligíveis. Desde a pressão dos capitalistas para prolongar e intensificar a jornada de trabalho dos operários, até ao esforço para inovarem tecnologicamente, baratearem as produções, designadamente os meios de consumo, desvalorizarem os salários. Tudo para extrair maior quantidade de mais-valia, para aumentar os lucros, que reinvestidos acumulam o capital.

De como, muito especialmente, o desemprego, criado nomeadamente pela reestruturação das condições sociais da produção e pela substituição de força de trabalho por máquinas, que condena à miséria parte e ameaça todos os trabalhadores, se torna funcional para a acumulação capitalista, ao conter as reivindicações salariais dentro de limites convenientes à extração da mais-valia, à obtenção de lucros, ao prosseguimento da acumulação. A concentralização e a centralização nos capitais mais fortes evidenciam-se como tendências intrínsecas dessa acumulação.

Livro segundo

No livro segundo de O Capital, Marx vai destrinçar, no emaranhado da circulação das mercadorias, os ciclos da mudança de forma do capital investido, as suas sucessivas «mudanças de pele», materializado em dinheiro, em elementos de produção (meios de produção e forças de trabalho) ou em mercadorias, sempre em busca de maior valorização.

Aqui surge outra distinção importante no capital. Aquele que é investido em meios de trabalho (como edifícios e maquinarias), que participam em vários processos de produção, o capital fixo, e aquele que é investido em matérias-primas e auxiliares ou em força de trabalho, que se consomem e têm que ser readquiridas a cada processo de produção, o capital circulante. A diferente proporção de um e outro influencia o tempo de rotação do capital, o tempo que se demora a recuperar o capital investido (acrescido da mais-valia).

Surgem, a partir deste livro, os outros assalariados, que trabalham fora da produção, nomeadamente no comércio ou na banca, que por isso não criam valor nem mais-valia. Mas que, como nas atividades comerciais e financeiras, contribuem para distribuir o valor criado pelo conjunto da sociedade e a mais-valia criada pelo conjunto da classe capitalista. Marx mostra como toda a classe capitalista, industriais, comerciantes, banqueiros, toda a espécie de capitalistas, explora coletivamente a classe operária.

Os trabalhadores do comércio ou bancários não criam mais-valia, porque se encontram arredados da produção, mas são, como os operários, explorados, porque também eles são obrigados pelos capitalistas a trabalhar bastante mais horas do que as que se necessitam em média para produzir os meios de vida que adquirem com os salários. Também eles são pressionados pelos patrões a prolongar e a intensificar as suas jornadas de trabalho. Também eles estão em antagonismo direto com os respetivos capitalistas, cujos lucros diminuem quando os seus salários sobem.

É no livro segundo que Marx enfrenta o chamado «problema da realização». Como é que cada parte do produto capitalista, enquanto valor (capital constante, capital variável, mais-valia) e enquanto valor de uso (meio de produção, meio de consumo necessário, para os trabalhadores, ou de luxo, para os capitalistas), encontra no mercado outra parte do produto capitalista para a substituir e prosseguir a reprodução capitalista.

Marx vai resolvê-lo com a divisão da produção capitalista em dois (ou três) departamentos – o departamento da produção de meios de produção e o departamento da produção de meios de consumo (em que distinguiu ainda o setor que produz meios de subsistência e o setor que produz meios de luxo) – e com os seus conhecidos esquemas de reprodução, simples (quando toda a mais-valia é improdutivamente consumida) e alargada (quando pelo menos parte da mais-valia é reinvestida na produção). Estes esquemas são os precursores da moderna análise das matrizes de input-output de Leontief, que estudam a interdependência da economia capitalista a um nível menos agregado, mais fino. Com eles, Marx demonstra a viabilidade do crescimento capitalista e mostra como o alargamento da produção capitalista cria o mercado para a sua própria expansão.

Livro terceiro

Assim parece que o capitalismo seria eterno. É no livro terceiro que Marx vai esclarecer como se desequilibra e perturba a acumulação capitalista.

A concorrência entre os capitais produz, no meio da sua turbulência, uma nivelação das rentabilidades dos novos investimentos. Constitui-se uma taxa geral de lucro. Os preços das mercadorias diferenciam-se dos valores, de modo a que capitais individuais da mesma dimensão, embora com composições orgânicas diferentes, isto é, com diferentes proporções de capital constante e capital variável, abocanhem porções iguais da mais-valia extraída globalmente.

É aqui que se estuda o famoso problema da transformação, dos valores em preços de produção – os preços que resultam do movimento de capitais tendencialmente igualador das taxas de lucro – e da mais-valia em lucro. Esta é, provavelmente, a controvérsia que mais rios de tinta fez correr acerca de O Capital. Marx, nos seus rascunhos, nada preparados para publicação, com plena consciência de que fazia uma simplificação, propõe uma solução aproximada em que os valores dos outputs (as mercadorias resultantes) das produções são transformados, mas os valores dos inputs (as mercadorias que são utilizadas) não são. Que lhe permite, contudo, captar o essencial da dinâmica do lucro da produção capitalista e mostrar como os valores são os reguladores dos preços de produção, em torno dos quais flutuam os preços de mercado, alterados pela relação entre a oferta e a procura.

Mas o mais importante já estava estabelecido. A revelação de que o lucro, que é o motivo e a condição da produção capitalista, só pode existir com a criação de mais-valia, de que é, no fundo, uma figura transformada. Ou seja, de que só há lucro e capitalismo porque os trabalhadores são explorados.

A mobilidade dos capitais, sempre em busca das maiores rentabilidades, não apenas entre os ramos da atividade produtiva, mas de toda a atividade económica, muito especialmente do comércio e da banca, reparte a mais-valia da produção industrial por toda a classe capitalista. O lucro comercial, que resulta da diferença dos preços a que se compra e vende, e o lucro bancário, que resulta da diferença dos juros a que se toma emprestado e empresta, assentam basicamente na apropriação de frações da mais-valia extraída pelos capitalistas industriais aos operários. O capital comercial e o capital bancário não geram mais-valia, mas, ao acelerarem a rotação do capital industrial, ajudam este a criar mais mais-valia.

Outros aspetos fundamentais para a compreensão do capitalismo atual são tratados neste livro terceiro. A riqueza desse material só pode ser aqui parcialmente mencionada. O capital portador de juro, «dinheiro que procria dinheiro», aparentemente desligado da base produtiva, sem «nenhumas cicatrizes da sua génese», como essência da atividade financeira. Mesmo no que respeita ao moderno fenómeno da financeirização, designadamente especulativa, Marx é um visionário, com a consideração e desenvolvimento do conceito de capital fictício – incluindo o dinheiro de crédito, os títulos de dívida pública e as obrigações e ações das empresas –, que representa fundamentalmente uma reivindicação sobre riqueza ainda a ser criada.

A sua teoria da renda fundiária também ganha renovado relevo contemporâneo nas análises da urbanização, da especulação imobiliária, dos recursos minerais, do petróleo. Bem compreendida, no caso das rendas diferenciais, é uma verdadeira teoria dos sobrelucros dos monopólios, gerados por obstáculos, naturais ou artificiais, à mobilidade de capitais.

Não obstante, o cume da sua exposição é a análise do motivo que desarranja a acumulação capitalista e que desencadeia, inevitavelmente, as grandes crises, as depressões. A queda tendencial da taxa geral de lucro. A economia política clássica detetara e registara o fenómeno, mas as suas explicações não eram satisfatórias.

Só com Marx se revela aquilo que é: uma expressão da elevação da produtividade do trabalho humano sob o capitalismo. No ambiente de coerção recíproca da concorrência capitalista, que obriga os empresários a cortar nos custos, para baixar os preços e defender as suas quotas de mercado, dados os limites biológicos e sociais ao prolongamento e intensificação das jornadas de trabalho, a única maneira, sustentável, de baixar os custos é com a introdução de maquinaria (incluindo bens não tangíveis como o software), para produzir mais com o mesmo trabalho, ou produzir o mesmo com menos trabalho. Se o empresário não introduz maquinaria, não se atualiza, os concorrentes fazem-no e, a prazo, não se aguenta.

As maquinarias e as matérias-primas processadas crescem muito em relação às forças de trabalho empregues, o que se reflete numa elevação da composição orgânica do capital, isto é, o capital variável diminui em relação ao capital constante e em relação ao capital total. Como a mais-valia é uma parte do novo valor criado e este diminui em relação ao capital adiantado, a taxa de lucro, razão entre o lucro e o capital, tenderá a cair.

Os fatores que estorvam esta queda, principalmente o agravamento da exploração e a desvalorização do capital, não a podem impedir a prazos mais longos. Nem a instalação de grandes crises, quando a acumulação do capital, por causa da baixa da taxa de lucro, passa a gerar menos lucro. Uma crise de sobreacumulação de capital, reforçada pela desorganização da produção (crise de desproporcionalidade) e pela explosão do desemprego, a contenção dos salários, das prestações sociais, da despesa pública, que agravam o escoamento dos bens de consumo e dos meios de produção (crise de subconsumo).

Os capitalistas precisam dos trabalhadores,

os trabalhadores não precisam dos capitalistas

O capitalismo não tem solução para as suas contradições fundamentais, para as suas crises, para a queda tendencial da taxa de lucro. Essa é mesmo a grande tese de O Capital: o capitalismo não tem solução.

Mas os trabalhadores e as suas organizações revolucionárias, como o nosso partido, não cruzam os braços à espera, indefinidamente, geração após geração, que a taxa de lucro chegue a zero, à espera do que se poderia chamar a «morte térmica» do capitalismo1.

Aprendemos, em O Capital, outro grande ensinamento. O de que os capitalistas precisam dos trabalhadores, exatamente porque vivem da exploração do seu trabalho, mas os trabalhadores não precisam para nada dos capitalistas. Apropriando-se dos meios de produção – que à exceção de alguns recursos naturais, como o solo incultivado, já são o produto do seu trabalho – podem eles próprios organizar a produção, a distribuição e a vida social, de modo a satisfazer, do modo mais completo possível, as necessidades materiais e culturais de toda a população.

1Tomando de empréstimo uma célebre especulação da física sobre o destino final do Universo, a sua morte térmica, quando a energia livre se reduz a zero e já não permite a realização de trabalho, em sentido físico, ou a vida (a entropia é máxima)