- Nº 2350 (2018/12/13)

Marx e a dimensão antropogenética da obra de arte

Argumentos

É conhecida a dificuldade que Marx coloca no final da «Introdução à Crítica da Economia Política» (de 1857): essa dificuldade confunde-se com a da especificidade da história tal como o método da economia política a enfrenta.

Mas a dificuldade não está em compreender que a arte grega e a epopeia estão ligadas a certas formas do desenvolvimento social. A dificuldade reside no facto de nos proporcionarem ainda um prazer estético e terem ainda para nós, em certos aspectos, o valor de normas e de modelos inacessíveis.

A resposta de Marx a esta dificuldade pode ser considerada algo equívoca e levar consigo alguns juízos que revelam aspectos da ideologia de quem os emite, no caso, podemos ver, na atribuição desse estatuto, traços de uma posição estética tradicionalista própria da idade clássica. Mas só um fraco leitor ficaria por este equívoco. A resposta efectivamente dada à dificuldade é um dos momentos em que o pensamento de Marx aflora uma concepção da arte como construção antropológica aberta.

Um homem não pode voltar a ser criança sob pena de cair na puerilidade. Mas não é verdade que acha prazer na inocência da criança e, tendo alcançado um nível superior, não deve ele próprio imitar aquela verdade? Em todas as épocas não se julga ver repetido o seu próprio carácter na verdade natural do temperamento infantil? Porquê então a infância histórica da humanidade naquilo precisamente em que atingiu o seu mais belo florescimento, porquê esse estado de desenvolvimento para sempre perdido, não há-de exercer um eterno encanto?

Há crianças mal educadas e crianças que se dão ares de pessoas crescidas. A maior parte dos povos da antiguidade pertenciam a esta categoria. Os gregos eram crianças normais. O encanto que a sua arte exerce sobre nós não está em contradição com o carácter primitivo da sociedade em que ela se desenvolveu. Pelo contrário, é uma consequência desse carácter primitivo e está indissoluvelmente ligado ao facto de as condições sociais e suficientemente maduras em que esta arte nasceu – nem poderia ter nascido em condições diferentes – nunca mais poderem repetir-se.

Esta resposta à perplexidade provocada pela perenidade dos efeitos estéticos face à dimensão histórica da arte não é satisfatória tal qual, mas coloca-nos numa situação em que se faz a experiência de um anacronismo: as obras de um passado relativamente distante são experienciadas num dado presente como sendo a infância histórica da humanidade que permanece à nossa disposição como uma infância perdida mas revisitável. Esta resposta apresenta-se-nos como uma resposta alegórica, ou seja, uma resposta que narrativiza uma metáfora. Essa metáfora apresenta-nos a relação entre os sujeitos modernos e o seu passado artístico como uma relação entre as diversas idades do homem e, logo, como uma metáfora antropológica que nos transporta para o terreno de uma antropologia cultural ou mesmo para uma visão da antropogénese.

Assim, essa narrativa de uma metáfora torna-se uma concepção que se abre à complexidade da história. Na história, as obras modificam e acumulam os sentidos que nelas são lidos pela diferentes gerações humanas. O valor de normas e de modelos inacessíveis são uma construção constante e descontínua dessas gerações que, ao lerem historicamente, de acordo com o seu presente, sentem a diferença entre esses dois presentes; aquele em que lêem, e aquele em que foram escritas essas obras e fazem essa diferença recuar para uma espécie de origem perdida, esse passado histórico.

Assim, a tragédia e a epopeia gregas, a Divina Comédia de Dante Alighieri e o teatro de Shakespeare, aparecem para sucessivos presentes futuros, como obras que formam a nossa infância histórica como humanos, o que significa também que são obras em que a formação dos cinco sentidos é um trabalho de toda a história do mundo até hoje.


Manuel Gusmão