Reconhecimento e celebração para além do Nobel

EVOCAÇÃO Pas­sados pre­ci­sa­mente 20 anos, o salão do Centro de Tra­balho Vi­tória voltou a trans­bordar, para ho­me­na­gear José Sa­ra­mago, numa sessão evo­ca­tiva da atri­buição do Prémio Nobel da Li­te­ra­tura.

«Con­nosco, porque foi essa sempre a sua von­tade e de­cisão»

A pri­meira e até agora única dis­tinção atri­buída pela Aca­demia Sueca a um autor por­tu­guês foi anun­ciada a 8 de Ou­tubro de 1998, uma se­mana de­pois de to­mada a de­cisão. O prémio seria en­tregue a José Sa­ra­mago no dia 10 de De­zembro, em Es­to­colmo.
O es­critor co­mu­nista re­ce­bera a no­tícia em Frank­furt, no final da grande Feira do Livro. Re­gressou a Lan­za­rote, para onde se mu­dara em 1993, de­pois de o go­verno de Ca­vaco Silva e Sousa Lara ter ve­tado a can­di­da­tura de O Evan­gelho Se­gundo Jesus Cristo ao Prémio Li­te­rário Eu­ropeu.
Chegou a Lisboa no dia 13, para a ce­ri­mónia de en­trega das Chaves da Ci­dade. Antes, já nos Paços do Con­celho, reuniu-se com o Se­cre­tário-geral do PCP e ou­tros di­ri­gentes. Na tarde do dia se­guinte, es­teve no CT Vi­tória, onde o Par­tido lhe prestou ho­me­nagem.
Ter­mi­nada a sessão, José Sa­ra­mago foi ao Ter­reiro do Paço, ex­pressar apoio aos tra­ba­lha­dores que ali par­ti­ci­pavam numa vi­gília contra o «pa­cote la­boral» pro­mo­vida pela CGTP-IN. Mais tarde, no Centro Cul­tural de Belém, teve lugar uma ho­me­nagem na­ci­onal.
O re­lato teve des­taque no Avante! de dia 15. Nessa mesma pri­meira pá­gina dava-se as boas vindas a Fidel Castro, que iria estar em Por­tugal no fim-de-se­mana, para a Ci­meira Ibero-Ame­ri­cana.
A evocar os 20 anos pas­sados desde esses dias me­mo­rá­veis, o PCP pro­moveu uma sessão este do­mingo, dia 14, em Lisboa, no his­tó­rico centro de tra­balho da Ave­nida da Li­ber­dade, com in­ter­venção do Se­cre­tário-geral. A com­pa­nheira de José Sa­ra­mago, Pilar del Rio, ou­tros con­vi­dados, al­guns ca­ma­radas de ofício e de com­bates do es­critor, di­ri­gentes do Par­tido e muitos ou­tros mi­li­tantes en­cheram por com­pleto o amplo salão e também o hall-li­vraria, onde foi dado des­taque às obras do ho­me­na­geado.
A sessão ini­ciou-se com um mo­mento cul­tural, que fora anun­ciado sem de­ta­lhes. Re­ve­lada a sur­presa, a can­tora e com­po­si­tora Paula Oli­veira, acom­pa­nhada ao piano por Da­niel Schwetz, in­ter­pretou seis das Can­ções Pos­sí­veis. Como ex­plicou com emoção, neste seu pro­jecto, que re­sul­tará em breve num disco, dá mú­sica e voz a versos de José Sa­ra­mago, pu­bli­cados pela pri­meira vez em 1966, no livro Os Po­emas Pos­sí­veis. Sempre muito aplau­dida, Paula Oli­veira fe­chou com Um Homem na Ci­dade, de Ary dos Santos, de­di­cando a canção ao «homem livre» lau­reado em 1998.

Com ale­gria e or­gulho

Je­ró­nimo de Sousa co­meçou por re­cordar como «nesta sala, faz agora 20 anos, num am­bi­ente de efu­siva ale­gria e com um jus­ti­fi­cado sen­ti­mento de or­gulho, os co­mu­nistas por­tu­gueses fes­te­jaram a atri­buição do Prémio Nobel da Li­te­ra­tura a José Sa­ra­mago e o en­vol­veram num sim­bó­lico e fra­terno abraço de ho­me­nagem e re­co­nhe­ci­mento».
Sus­citou fortes aplausos, quando disse que «aqui re­gres­samos» para evocar Sa­ra­mago, «desta vez, sem a sua pre­sença fí­sica, mas con­nosco, porque foi essa sempre a sua von­tade e de­cisão até ao dia em que nos deixou por im­pe­ra­tivo da lei da vida que nos faz mor­tais e fa­zendo jus às suas pa­la­vras nesse ines­que­cível Ou­tubro de 1998 que ecoam ainda na nossa me­mória de com­pa­nheiros de com­bate por um mundo me­lhor: “Eu hoje com o prémio posso dizer que, para ga­nhar o prémio, não pre­cisei de deixar de ser co­mu­nista.”».
José Sa­ra­mago «não pre­cisou de se es­conder, nem se quis es­conder» e «a sua no­tável e re­co­nhe­cida obra, para lá do Nobel, ex­pressão de um sen­sível e hu­mano olhar sobre os pro­blemas do homem e da hu­ma­ni­dade e o seu des­tino (fu­turo), seria outra sem a visão do mundo dessa sua con­dição que com or­gulho as­sumiu». Sem essa con­dição de co­mu­nista, «a massa hu­mana de muitos dos seus li­vros não se mo­veria com o mesmo fulgor e não se sen­tiria em muitos deles o pe­noso, trá­gico, exal­tante, con­tra­di­tório, lu­mi­noso, som­brio, in­ces­sante mo­vi­mento da his­tória», sa­li­entou o Se­cre­tário-geral do Par­tido.
Re­fe­rindo-se ao sig­ni­fi­cado da atri­buição do Nobel a Sa­ra­mago, Je­ró­nimo de Sousa lem­brou-o como «con­tri­buto para afir­mação da li­te­ra­tura de língua por­tu­guesa no mundo e para o re­co­nhe­ci­mento do por­tu­guês como língua de re­fe­rência im­por­tante na cul­tura mun­dial». Ou­tor­gado a um autor que «abriu novas portas à li­te­ra­tura por­tu­guesa no plano in­ter­na­ci­onal», o Prémio Nobel «trans­formou José Sa­ra­mago num em­bai­xador da cul­tura e da nossa língua», «con­tri­buindo para tornar a nossa li­te­ra­tura uma re­fe­rência res­pei­tada e per­ma­nente, no con­texto da cul­tura li­te­rária uni­versal». Mas, ob­servou, essa atri­buição «foi al­ta­mente pres­ti­gi­ante não apenas para Sa­ra­mago e para nós, por­tu­gueses, mas também para o pró­prio Prémio».
«Bo­nita e pro­fun­da­mente emo­tiva» foi «a festa que aqui re­a­li­zámos há 20 anos» e que «que­remos, po­demos e de­vemos pro­longar, lendo e re­lendo, sa­bo­re­ando e re­flec­tindo sobre cada pá­gina» da obra de «um es­critor que veio do povo tra­ba­lhador, a quem amou e foi fiel», apelou Je­ró­nimo de Sousa.
O Se­cre­tário-geral do PCP ter­minou a sua in­ter­venção olhando José Sa­ra­mago como «homem que, amando o seu povo, amou Abril» e as­se­gu­rando que o Par­tido «ja­mais dei­xará de o ce­le­brar, não apenas como um es­critor maior da li­te­ra­tura por­tu­guesa, mas também como o homem com­pro­me­tido com os ex­plo­rados, in­jus­ti­çados e hu­mi­lhados da terra, que as­sumiu va­lores éticos e um ideal po­lí­tico do qual não ab­dicou até ao fim da sua vida».

Autor maior contra o fas­cismo

«Sa­bemos quão vasta é a obra de José Sa­ra­mago e quanto fica de fora destas pa­la­vras que são de re­co­nhe­ci­mento e de ce­le­bração. Quantos ro­mances, do Ano da Morte de Ri­cardo Reis à Jan­gada de Pedra, do En­saio sobre a Ce­gueira a Todos os Nomes, do Homem Du­pli­cado à Vi­agem do Ele­fante, quantos contos, quanta po­esia, te­atro e cró­nicas de uma obra ímpar, po­de­riam aqui ser re­cor­dados. Quanto aqui po­de­ríamos trazer de opi­niões ava­li­zadas para lem­brar, neste dia de ce­le­bração, a gran­deza do uni­verso pró­prio de José Sa­ra­mago como um autor maior das nossas le­tras. Desse uni­verso onde ha­bitam os va­lores do hu­ma­nismo, da so­li­da­ri­e­dade, da jus­tiça que são, como muitos o re­co­nhecem e pro­clamam, as traves mes­tras do seu dis­curso, cons­truído também numa pe­cu­liar re­lação entre a ficção e a his­tória em muitos dos seus li­vros. Uma obra que, sendo uni­versal, não re­nega raízes na­ci­o­nais, que busca também ins­pi­ração no que a li­te­ra­tura por­tu­guesa tem pro­du­zido de me­lhor ao longo do tempo.
Ce­le­bramos os 20 anos do Prémio Nobel e nesta ce­le­bração evo­camos o homem que desde muito jovem tomou lugar na luta pela li­ber­tação do seu povo e contra o fas­cismo.
Essa hidra ve­ne­nosa – arma de ar­re­messo contra o mo­vi­mento ope­rário – que agora re­toma um in­qui­e­tante le­vantar de ca­beça, nuns sí­tios às claras e pro­vo­ca­to­ri­a­mente, nou­tros a co­berto de dis­farces vá­rios e novas apa­rên­cias e al­te­radas ca­rac­te­rís­ticas.»

Cons­trutor de Abril

«Evo­cámos o mi­li­tante co­mu­nista e es­critor pre­sente e in­ter­ve­ni­ente ac­tivo, desde os idos anos 1940 nas mais di­versas ac­ti­vi­dades da Re­sis­tência an­ti­fas­cista».
«Mas este também é o mo­mento de evocar a em­pe­nhada e de­di­cada in­ter­venção de José Sa­ra­mago na de­fesa dos va­lores de Abril, que no con­creto as­sumiu, nos seus pro­pó­sitos de li­ber­dade, trans­for­mação so­cial, de efec­ti­vação dos di­reitos so­ciais uni­ver­sais, ele­vação cí­vica e cul­tural e in­de­pen­dência na­ci­onal, e na de­fesa do pro­jecto, em im­por­tantes com­bates po­lí­ticos e elei­to­rais, no­me­a­da­mente como can­di­dato ao Par­la­mento Eu­ropeu, em todas as elei­ções, desde 1987 a 2009.
O mo­mento de evo­carmos o in­te­lec­tual em­pe­nhado e atento que con­se­guiu, através das pa­la­vras, subir ao povo, com ele co­mungar as agruras, a fome, as lutas e, nessa con­dição, afir­ma­tiva e co­ra­josa, en­frentou aqueles que ten­tavam em de­ses­pero, na Re­vo­lução de Abril, um re­gresso ao pas­sado si­nistro da di­ta­dura e se as­sumiu como um cons­trutor de Abril, ser­vindo os tra­ba­lha­dores, o povo e o País.»

Je­ró­nimo de Sousa
Ex­certos da in­ter­venção na sessão de dia 14

 



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