Inverter a degradação do sector ferroviário

Rui Braga

ECONOMIA Os recentes desenvolvimentos sobre o sector ferroviário, em geral, e sobre a CP, em particular, vieram demonstrar, uma vez mais, que o PCP tinha e tem razão nos continuados avisos e denúncias sobre a política que sucessivos governos do PS e PSD, com ou sem CDS, têm implementado no sector e que, expressão dessa convergência, tem contribuído para a sua continuada degradação.

PS, PSD e CDS sempre apoiaram as decisões da UE contrárias ao sector ferroviário nacional

Tivessem os mesmos que agora, hipocritamente, vertem lágrimas de crocodilo acatado as sucessivas propostas que o PCP tem feito ao longo das últimas décadas e a situação seria bem diferente. No dia 5 de Abril de 1975, praticamente um ano após a revolução de Abril e já com uma Comissão Administrativa a dirigir a CP, os trabalhadores ferroviários – respondendo ao apelo da União dos Sindicatos Ferroviários – reuniram-se em Plenário Nacional, no Pavilhão dos Desportos, em Lisboa, e decidiram exigir ao governo provisório a nacionalização da CP. Esta era uma medida fundamental que se impunha, pois a empresa encontrava-se num estado de grande atraso e obsoletismo ao nível das infraestruturas, do material circulante e das condições de trabalho.

A nacionalização da CP, em 16 de Abril de 1975, pelo Decreto-Lei nº 205-B/75, assinado, entre outros, pelo primeiro-ministro Vasco Gonçalves e pelo ministro sem pasta Álvaro Cunhal, foi uma medida que se impunha e de grande alcance, que representou um enorme avanço na valorização do transporte ferroviário, na melhoria das infraestruturas e do material circulante, nas condições de trabalho praticadas e na oferta disponibilizada aos utentes. Uma medida que teve por objectivo colocar o caminho-de-ferro ao serviço da economia nacional, dos trabalhadores e do povo.

A dinâmica criada pela nacionalização da empresa provocou crescimento em indicadores de produção muito significativos, contribuindo para o desenvolvimento da economia nacional – é disso exemplo a Sorefame –, procurando conjugar o desenvolvimento harmonioso do País e o direito à mobilidade dos trabalhadores e das populações.

A contra-revolução confessa-se

Em 1976, com o 1.º governo constitucional (PS), do então primeiro-ministro Mário Soares, a dinâmica criada pela nacionalização sofreu um forte revés, passando a conviver com um processo, da responsabilidade de governos PS, PSD e CDS, que começa a esquartejar a CP, procurando reduzi-la à sua expressão mais simples e levando à progressiva entrega de importantes áreas a grupos privados. É neste processo de contra-revolução que, acompanhado o processo de integração capitalista na Europa se dá, novamente pela mão de Mário Soares, primeiro-ministro do governo PS/PSD, a adesão de Portugal à então Comunidade Económica Europeia (CEE), em 1985 – que, como o PCP já caracterizou, foi um elemento central da contra-revolução.

Na quase uma década que separa o pedido e a assinatura do tratado de adesão, Portugal é submetido a duas intervenções do FMI. Neste mesmo período, em nome dos compromissos decorrentes dos «empréstimos» e da preparação de Portugal para a entrada no «mercado comum», o País, os trabalhadores e o povo são sujeitos a um conjunto de políticas que visaram «adaptar» Portugal ao processo de integração capitalista e fazer retroceder conquistas políticas, sociais e económicas da Revolução de Abril.

Tal como então afirmámos, a adesão de Portugal a CEE/UE não serviu os interesses dos trabalhadores, do povo e do País. A nossa soberania, a todos os níveis, foi gravemente amputada e importantíssimas questões da vida do País são hoje fortemente condicionadas, quando não decididas, pelos órgãos e instâncias da União Europeia e, em particular, pelo directório de potências comandado pela Alemanha.

Naturalmente a CP, pela sua importância estratégica, não está alheada de todo este processo. Em 1991, com o primeiro «pacote ferroviário», a União Europeia elaborou e aprovou a Directiva 91/440, que previa a obrigatoriedade da separação contabilística entre a infraestrutura e a exploração. Por essa altura, era o PSD de Cavaco Silva que governava o País, fazendo gala de Portugal ser o «bom aluno da Europa». Como todos os bons alunos, o governo PSD, com o apoio do PS e do CDS, prontificou-se de imediato a cumprir com a directiva e a fazer aquilo que a Alemanha ainda hoje não concretizou.

Contudo, como bons alunos, era preciso ir mais longe, ir mais além, e se a directiva «apenas» previa a obrigatoriedade da separação contabilística entre a infra-estrutura e a exploração, o passo seguinte, dado pelo governo do PS de António Guterres, tendo João Cravinho como ministro dos Transportes, foi a criação de duas empresas distintas: CP na Operação e REFER na Infraestrutura. Com esta decisão, introduziu-se uma lógica cliente-fornecedor em duas empresas interdependentes, que desde então caminham de costas voltadas. Os investimentos efectuados na infra-estrutura nem sempre respondem às necessidades do operador. Este, por sua vez, molda a sua oferta não às necessidades do País e das populações mas à rede disponibilizada.

Outra «inovação» preconizada pelos governos da política de direita foi a criação de uma empresa para reparação e manutenção do material circulante, a EMEF, separada da empresa-mãe, a CP. Com esta divisão, nunca antes replicada noutra rede ferroviária, introduziu-se, uma vez mais, uma lógica cliente-fornecedor em duas empresas umbilicalmente dependentes entre si, quer nas funções que têm quer financeiramente, uma vez que a EMEF é detida a 100 por cento pela CP, dona e operadora do material circulante que a EMEF mantinha (com as privatizações e concessões, essa realidade alterou-se, com os problemas novos que está a criar, à custa dos quais o actual governo quer privatizar a reparação do material oferecido à Medway).

Até hoje, a UE já produziu mais três «pacotes ferroviários», sempre com o objectivo de mercantilizar o mais possível e colocar o sistema sobre o domínio das multinacionais, sejam elas fabricantes ou operadoras de serviços. O último desses «pacotes», o IV, abre o caminho para a apropriação dos sectores rentáveis da CP por parte das multinacionais, nomeadamente o Longo Curso e os Comboios Urbanos de Lisboa e Porto, deixando para a empresa pública apenas os sectores mais deficitários, como é o caso dos comboios do serviço Regional.

Este caminho, que foi deliberadamente escolhido pelos sucessivos governos do PS, PSD e CDS, que na União Europeia defenderam e aprovaram essas políticas e as concretizaram em Portugal, conduziu o sector a uma profunda degradação e iminente ruptura.

Desde 1988 que os portugueses perdem transporte ferroviário: foram desmantelados mais de 1500 quilómetros de caminho-de-ferro e destruídos mais de 19 mil postos de trabalho, cancelaram-se ou adiaram-se importantes investimentos, que a terem sido concretizados evitariam parte da degradação do serviço com que o País está hoje confrontado. Investimentos ainda mais necessários já que, com a degradação que tem vindo a registar-se, são as próprias condições de segurança do transporte ferroviário que ficam fragilizadas.

Por outro lado, a pulverização do sector ferroviário, concretizada ao longo de décadas por opção de sucessivos governos, criou múltiplas oportunidades de negócio para os grupos económicos privados, mas degradou a oferta, fiabilidade e segurança da operação, precarizou as relações laborais, provocou o aumento de custos para os utentes e para o Estado – de que é exemplo a PPP com a Fertagus –, comprometeu a soberania nacional.

Enquanto Portugal perdeu 43 por cento dos seus passageiros/quilómetro, a Alemanha ganhou 24 por cento e a França 35 por cento, só para mencionar dois dos países mais favorecidos, confirmando como as políticas da UE são geradoras de assimetrias de desenvolvimento que põem objectivamente em causa direitos e a própria soberania dos Estados.

Resistência e luta contra a política de direita

Ao longo destas décadas, a resistência e luta dos trabalhadores ferroviários à ofensiva contra o sector ferroviário tem sido enorme. Para o PCP, o transporte ferroviário tem que ser uma prioridade, quer no que respeita ao transporte de mercadorias, potenciando o desenvolvimento do aparelho produtivo nacional, quer no que respeita ao transporte de passageiros, como vertente fundamental do transporte público e do direito à mobilidade, que necessita de uma outra política, que promova a sua utilização massificada.

Não escamoteando, nem desvalorizando, os problemas que existem no sector ferroviário, a campanha orquestrada pela comunicação social nos últimos meses encontra diversos paralelos ao longo deste processo, muitas vezes desenvolvida a propósito do passivo, artificialmente criado à CP, mas sempre com o objectivo de facilitar as privatizações ou as PPP. Termos memória destes acontecimentos é particularmente útil quando vemos aqueles que mais responsabilidades têm em todo este processo de abandono e degradação do sector, aparecerem como paladinos da sua defesa, chegando ao cúmulo de, tal qual «vendedores da banha da cobra», apontarem a dedo soluções para os problemas que eles próprios criaram.

Soluções «novas», «modernas», «a la carte», mas que, diga-se em abono da verdade, de novo e moderno nada têm! «A la carte» sim, mas para servir os mesmos de sempre, preconizando mais privatizações, mais precariedade, facilitando o processo de concentração monopolista em curso no sector.

Como o PCP há muito defende, a ruptura com a política de direita no sector só pode ser plenamente concretizada como parte de um processo mais vasto e nacional preconizado por uma outra política, uma política patriótica e de esquerda que tenha como objectivo central a defesa e a valorização dos interesses dos trabalhadores, do povo e do País.

Nesta nova fase da vida política nacional, consequência da luta dos trabalhadores e da acção e iniciativa do PCP, foi possível repor rendimentos e direitos dos trabalhadores – como o direito à utilização dos comboios pelos ferroviários e suas famílias, bem como a defesa da contratação colectiva e a reposição dos direitos que esta consagra.

As propostas que temos apresentado têm-se revelado cada vez mais necessárias e urgentes. Contudo, ao mesmo tempo que PSD e CDS, olvidando responsabilidades passadas, continuam na sua senda demagógica, o Governo minoritário do PS, enredado nos seus compromissos com o grande capital e sua submissão à União Europeia, tem resistido à adopção de medidas efectivas, como disso é exemplo a não concretização do Projecto de Resolução do PCP «Por um Plano Nacional de Material Circulante Ferroviário», aprovado na Assembleia da República.

A actual situação do País, os recentes acontecimentos verificados em várias dimensões da vida nacional, provam que o povo está a pagar bem cara a política de abandono e degradação dos serviços públicos, empresas públicas e funções do Estado. O poder e os interesses dos grupos monopolistas, o sorvedouro dos juros da dívida, as imposições da União Europeia feitas em nome da moeda única, não se podem sobrepor às necessidades do País e do povo.




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