Maravilhosa criação do imaginário popular alentejano

PA­TRIMÓNIO O Avante! falou com os ac­tores-ma­ni­pu­la­dores que há cerca de 40 anos dão vida aos «atre­vidos» Bo­necos de Santo Aleixo.

Con­ti­nuam li­gados a este fe­nó­meno ar­tís­tico de uma forma apai­xo­nada

Estas ma­ri­o­netas, tra­di­ci­o­nais do Alen­tejo e pro­pri­e­dade do Cen­drev – Centro Dra­má­tico de Évora, são ma­ni­pu­lados por uma «fa­mília» cons­ti­tuída por ac­tores pro­fis­si­o­nais: Ana Meira, Isabel Bilou, José Russo, Victor Zam­bujo e Gil Sal­gueiro Nave, que ga­rante, também, o acom­pa­nha­mento mu­sical (gui­tarra por­tu­guesa).

Os bo­necos re­montam ao sé­culo XIX, mas, como o actor José Russo frisou, «nestas coisas da tra­dição há sempre muitas dú­vidas». «A ver­dade é que Ma­nuel Ja­leca, que vivia em Es­tremoz, casou com uma tal de An­tónia Maria, neta ou bis­neta de Fran­cisco Ne­po­mu­ceno (car­pin­teiro e pessoa culta), autor dos textos [ti­rados da Bí­blia] e das pró­prias fi­guras de pau», elu­cidou, adi­an­tando que, de­pois da se­pa­ração, o fa­moso gui­tar­rista «con­se­guiu re­fazer o es­pec­tá­culo» com o mestre An­tónio Ta­lhi­nhas, de San­tiago do Rio de Moi­nhos, um homem de forte per­so­na­li­dade, do­tado de grande poder de im­pro­vi­sação e cantor.

Ta­lhi­nhas ra­pi­da­mente se in­te­grou na­quela arte e passou a di­rigir a com­pa­nhia. Na dé­cada de 70 do sé­culo pas­sado, e porque já não con­se­guia fazer mais es­pec­tá­culos, vendeu todo o es­pólio à As­sem­bleia Dis­trital de Évora por 700 contos. Em 1979, o Cen­drev fi­cava de­po­si­tário de todo o ma­te­rial. «Veio a Évora as vezes que lhe foi pos­sível vir» para en­sinar a «ra­pa­ziada da Es­cola de Te­atro» a «tra­ba­lhar com os bo­necos», re­cordou José Russo.

A re­colha do re­per­tório, com os en­saios de ma­ni­pu­lação e elo­cução di­ri­gidos pelo mestre Ta­lhi­nhas, ini­ciou-se em 1980, fi­cando esse tra­balho con­cluído em 1994. «Os textos (que antes eram trans­mi­tidos oral­mente) foram es­critos por Ale­xandre Passos, um velho e grande actor da com­pa­nhia. Ma­nuel Costa Dias, ce­nó­grafo, fez os de­se­nhos da co­re­o­grafia dos bo­necos. Tudo foi ano­tado», adi­antou Gil Sal­gueiro Nave, iro­ni­zando: «Na al­tura não havia you­tube. Foi um con­tacto muito per­so­na­li­zado, afável e emo­tivo, também.» «Para jo­vens com 20 e poucos anos, já se­du­zidos por ou­tras tec­no­lo­gias, essa in­cursão foi uma ex­pe­ri­ência ines­que­cível, de tal ma­neira que os anos pas­saram e con­ti­nu­amos, hoje, li­gados a este fe­nó­meno ar­tís­tico de uma forma apai­xo­nada», acres­centou o actor.

Re­a­li­dades dis­tintas
No seu tes­te­munho, re­cuou aos pri­mór­dios deste es­pec­tá­culo, que «es­tava con­fi­nado a uma re­a­li­dade ter­ri­to­rial re­la­ti­va­mente res­trita» e so­bre­vivia com a «gente pobre do Alen­tejo», mas também com os «la­vra­dores», que fa­ci­li­tavam a «ins­ta­lação do re­tá­bulo num bar­racão da her­dade» e for­ne­ciam o «azeite» para as lam­pa­rinas.

Para ilus­trar «esta ca­pa­ci­dade de estar em vá­rios am­bi­entes», re­cordou uma his­tória con­tada pelo pró­prio Mestre Ta­lhi­nhas. «Du­rante os anos ne­gros e pe­sados do fas­cismo houve um con­gresso de la­vra­doures no Pa­lácio D. Ma­nuel, em Évora. O tio (Ma­nuel) Ja­leca – fi­gura in­con­tor­nável da his­tória dos bo­necos – disse ao se­nhor (Aníbal) Fal­cato: “já viu, ontem num pa­lheiro, hoje num pa­lácio real”».

Cul­tura com humor naif

Estes tí­teres de varão, ma­ni­pu­lados por cima, à se­me­lhança das ma­ri­o­netas do Sul de Itália e do Norte da Eu­ropa, são cons­truídos em ma­deira e cor­tiça, medem entre 20 e 40 cen­tí­me­tros de al­tura e são ves­tidos com um guarda-roupa que per­mite, como no te­atro na­tu­ra­lista, iden­ti­ficar as per­so­na­gens da fá­bula con­tada. A mú­sica (gui­tarra por­tu­guesa) e as can­tigas são exe­cu­tadas ao vivo.

O lugar de re­pre­sen­tação é um re­tá­bulo, cons­truído em ma­deira e te­cido flo­ridos, re­pro­du­zindo um palco tra­di­ci­onal em mi­ni­a­tura com pano de boca, ce­ná­rios pin­tados em pa­pelão e ilu­mi­nação pró­pria (can­deia de azeite).

Uma rede dupla de cor­déis, co­lo­cada ver­ti­cal­mente entre os bo­necos e o pú­blico, faz com que os arames ou va­rões presos à ca­beça das fi­guras de pau fi­quem como que des­fo­cados. A ilusão óp­tica assim criada trans­fi­gura os bo­necos, que se mo­vi­mentam como seres hu­manos.

Como Victor Zam­bujo acen­tuou, a prin­cipal di­fe­rença entre os Bo­necos de Santo Aleixo e, por exemplo, as ma­ri­o­netas do Louvre está na «téc­nica de cons­trução» e na «ma­ni­pu­lação», por cima. «Há ou­tros bo­necos com este tipo de téc­nica, mas contam outro tipo de his­tó­rias», com­ple­mentou José Russo.

Que his­tó­rias contam?
O re­per­tório é vasto e é com­posto por peças de tra­dição se­cular, de teor mais es­pe­ci­fi­ca­mente re­li­gioso, sai­netes pi­ca­restos, qua­dras glo­sadas, bailes po­pu­lares e des­pi­ques. Assim, ao lado dos Autos, como a «Cri­ação do Mundo» e o «Nas­ci­mento do Me­nino Jesus», e de In­ter­valos ou Passos, como o «Passo do Bar­beiro» e o «Sermão do Padre Chancas», há ou­tras peças cujos textos per­tencem, em geral, à cha­mada li­te­ra­tura de cordel. São disso exemplo: «Fado do Se­nhor Paulo d’A­fon­seca e da Me­nina Vir­gínia», a «Con­fissão da Beata» e a «Con­fissão de Mestre Salas», entre ou­tros.

«Todos são ba­se­ados nas sa­gradas es­cri­turas, em­bora com uma par­ti­cu­la­ri­dade, única, muito in­te­res­sante, que é o olhar dos alen­te­janos sobre os textos. O olhar, a forma de dizer e de in­ter­pretar aquilo que se está a dizer. É um humor muito naif, muito pró­prio da cul­tura alen­te­jana», co­mentou Victor Zam­bujo. José Russo evi­den­ciou o «atre­vi­mento» de in­tro­duzir na «his­tória das es­cri­turas per­so­na­gens ac­tuais», como o Mestre Salas.

«Estas peças são uma ad­ver­tência, uma alusão cons­tante à con­dição do homem alen­te­jano e não nos sur­pre­en­demos quando os tí­teres le­vantam di­ante nós um Caim à imagem da pró­pria in­qui­e­tação, com ma­ni­festa co­ragem», disse An­tónio Ga­vela.

Bo­necos pro­metem en­cantar o pú­blico da Festa do Avante!

Esta não será a pri­meira vez que os Bo­necos de Santo Aleixo vão à Festa do Avante!. Há muitos anos, na Ajuda, ac­tu­aram no Avan­te­atro.

No Ano Eu­ropeu do Pa­tri­mónio Cul­tural, 2018, o seu re­gresso, agora no Pa­vi­lhão Cen­tral, é um mo­mento «ex­cep­ci­onal», des­tacou José Russo, fri­sando: «Vamos mos­trar os bo­necos de uma forma muito con­digna.» «Os cinco ac­tores da com­pa­nhia vão estar dis­po­ní­veis du­rante os três dias, a fazer apre­sen­ta­ções, mas também a acom­pa­nhar o pú­blico. Que­remos dar a co­nhecer e mos­trar por dentro os Bo­necos de Santo Aleixo, um es­pólio ex­tra­or­di­nário mesmo no plano mun­dial», re­alçou o actor.

Em nome de todos e de olhos postos no fu­turo, ma­ni­festou con­fi­ança de que um dia será criado em Évora um «es­paço pró­prio» onde se «possa de­po­sitar, con­dig­na­mente, os ori­gi­nais dos Bo­necos de Santo Aleixo». «Este mo­mento que a Festa nos vai pro­por­ci­onar pode ser im­por­tante para a con­cre­ti­zação deste de­sejo», disse José Russo.

As fi­guras de pau já per­cor­reram o mundo

Co­nhe­cidos e apre­ci­ados em Por­tugal, com fre­quentes des­lo­ca­ções aos lo­cais onde tra­di­ci­o­nal­mente se re­a­li­zava o es­pec­tá­culo, os Bo­necos de Santo Aleixo par­ti­ci­param e par­ti­cipam, também, em muitos cer­tames in­ter­na­ci­o­nais fora do País (Es­panha, Bél­gica, Ho­landa, In­gla­terra, Grécia, Mo­çam­bique, Ale­manha, Macau, China, Índia, Tai­lândia, Brasil, Rússia, Mé­xico, Po­lónia, Itália, Ir­landa e França) e são an­fi­triões da Bi­enal In­ter­na­ci­onal de Ma­ri­o­netas de Évora – BIME, que se re­a­liza desde 1987.

Por todo o mundo, estas fi­guras – assim como os ac­tores-ma­ni­pu­la­dores – são aco­lhidas com «um ca­rinho muito grande». «Nor­mal­mente apre­sen­tamos o Auto da Re­cri­ação do Mundo. Mesmo quem não co­nhece a his­tória – con­tada em por­tu­guês – fica en­can­tado com todo aquele en­vol­vi­mento: o ritmo dos bo­necos, a mú­sica e a mu­si­ca­li­dade das vozes, os efeitos es­pe­ciais. As pes­soas ficam des­lum­bradas», sa­li­entou Ana Meira.

José Russo va­lo­rizou o facto de se manter «todos os ele­mentos do es­pec­tá­culo tal qual o re­ce­bemos do Mestre Ta­lhi­nhas». Re­feria-se, por exemplo, à «can­deia de azeite que ilu­mina o es­pec­tá­culo», às «bombas que re­bentam, feitas pelo Victor (Zam­bujo)», à «mú­sica to­cada com a gui­tarra por­tu­guesa, pelo Gil (Sal­gueiro Nave)». «Este es­pec­tá­culo é tão es­pe­cial que até tem cheiro (do azeite a queimar, da pól­vora, das velas)», dizem-nos.

Per­so­na­gens ca­ris­má­ticos

O Mestre Salas surge como um apre­sen­tador, pois a sua ac­tu­ação nos di­fe­rentes qua­dros do es­pec­tá­culo é uma po­sição mais de co­men­tador da acção que se está a passar e não no seu centro. A sua in­ter­venção é in­tensa, como é o caso dos bai­li­nhos e o re­per­tório de farsa, onde também são evi­dentes o «falar alen­te­jano» com re­gi­o­na­lismos lin­guís­ticos e o im­pro­viso, ca­rac­te­rís­ticas que o de­finem bem.

Por seu lado, o Padre Chancas é o re­pre­sen­tante do clero. O seu fi­gu­rino é uma ba­tina de padre e nas mãos traz um bar­rete es­cul­pido em ma­deira e um guizo. É uma das per­so­na­gens mais mal tra­tada dos bo­necos, che­gando mesmo a ser agre­dido vá­rias vezes pelo Mestre Salas.

O Padre Chancas está sempre en­vol­vido em si­tu­a­ções in­com­pa­tí­veis com a sua su­posta «se­ri­e­dade» e a sua função na so­ci­e­dade.

Pro­grama

Sexta-feira

22h00 – Es­pec­tá­culo

Sá­bado

11h00 – Vi­sita guiada à ex­po­sição se­guida de es­pec­tá­culo
14h00 – Es­pec­tá­culo
16h00 – Vi­sita guiada à ex­po­sição se­guida de es­pec­tá­culo
18h00 – Es­pec­tá­culo se­guido de de­bate
22h00 – Vi­sita guiada à ex­po­sição se­guida de es­pec­tá­culo

Do­mingo

11h00 – Vi­sita guiada à ex­po­sição se­guida de es­pec­tá­culo
14h00 – Es­pec­tá­culo
16h00 – Vi­sita guiada à ex­po­sição se­guida de es­pec­tá­culo
21h00 – Es­pec­tá­culo






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CUL­TURA O Es­paço Cen­tral da Festa do Avante! acolhe uma ex­po­sição sobre os Bo­necos de Santo Aleixo. A origem, a his­tória, as fa­mí­lias de bo­ne­creiros, a ac­tu­ação, o re­per­tório, os Bo­necos – com o Mestre Salas e o Padre Chancas como an­fi­triões do es­pec­tá­culo – e o seu papel de contra-poder guiam-nos por esta ma­ra­vi­lhosa cri­ação do ima­gi­nário po­pular alen­te­jano.
Na­quele es­paço
vão ter ainda lugar re­pre­sen­ta­ções, se­guidas de con­tactos com o pú­blico, vi­sitas gui­adas e um de­bate.