Há sempre um livro, um poema, um filme, uma peça de teatro a lembrar-nos que o fascismo existiu; há sempre alguém que ainda traz no corpo as marcas das sevícias, da fome, das dores do degredo, dos temores do frio, o reumático nos ossos das longas noites em celas húmidas e impróprias para seres humanos. Alguém que tem memória e nos diz desses dias, meses, anos, o que foi transportar aos ombros os punhais do ódio, as afrontas, as humilhações, as coronhadas, os pontapés dos verdugos – a memória firme e ampla dos que vieram da noite mais longa da vergonha. Alguém, muitos felizmente, que nos deixou um livro, um conto, um poema em que muito desses dias se escreve e conta para que se não esqueça, para os que desses tempos, pela luta de gerações, se livraram, tenham presente que houve dias assim, prisões assim, perigos assim e homens corajosos que não permitiram que o medo tivesse tudo.
É dessa experiência, dessa memória transmissível, do conhecimento da angústia sofrida no cerne do absurdo, e da forma como lhe foi transmitida e a entendeu matéria impressiva de abordagem literária, que o romance de Carlos Tomé, Um Perigoso Leitor de Jornais, se estrutura. Narrativa que o autor entende ser ferramenta essencial de denúncia, de testemunho e assentamento de um tempo singular vivido no gume dos limites por gente comum cujo o único crime foi o de querer perceber, para além da propaganda fascista, saber mais sobre o seu tempo, o mundo e o país que habitava. Claude Prévost considerava ser a função primordial do escritor enquanto utilizador privilegiado da palavra, essa matéria viva, transmitir um pensamento imbuído de acção, agir com o outro, dado que «o material que a literatura trabalha está carregado de história e de sentido». É da objectivação crítica da história, da memória e das emoções, desse universo das emoções primordiais – são tocantes as descrições, as análises que o autor inscreve do personagem e do seu núcleo familiar –, que a escrita de Carlos Tomé se ergue autêntica, essencial e rigorosa na forma como nos dá a ler a história verdadeira de um parente chegado que sofreu na carne e na dignidade um dos mais inumanos períodos da opressão salazarista: os anos finais da Guerra Civil de Espanha até aos primórdios da 2ª. Guerra.
Carlos Ildefonso Tomé, carteiro em Ponta Delgada, rigoroso no seu mister, conhece por mero acaso profissional António Faria, militante comunista, recebendo este, disfarçado entre as páginas do Diário de Lisboa, um jornal impresso em papel bíblia, mas de conteúdo raro e em tudo contrário à informação oficial que lhe chegava através dos jornais que lia. Há aqui coisas que não são publicadas em mais nenhum outro jornal, senhor Tomé. Veja, por exemplo, este artigo sobre o Tarrafal, de que lhe falei há pouco. O título já diz alguma coisa: «Salvemos os presos, vítimas do fascismo». Se tivesse tempo, poderia lê-lo. (...) Nesse dia, entre as páginas de um exemplar antigo do Diário de Notícias, Carlos levou para casa dois números do Avante! (p.40/41).
A leitura continuada do Avante! custará ao carteiro Carlos Tomé dois longos anos de prisão na sinistra fortaleza de S. João Baptista, em Angra do Heroísmo. Aí conhecerá outros antifascistas, como Pires Jorge, José Gregório, António Jorge, David Cabral. As marcas desses dias estarão na origem da sua prematura morte.
Este livro mostra que os tentáculos da PVDE, a opressão, poiso larvar de uma outra, assaz mais vasta e tentacular violência, não se estabelecia apenas no espaço continental, ela espalhava-se, a partir desse núcleo, e sem brandura, por todo o território.
Carlos Tomé parte de uma realidade reconhecida para transpor outra dimensão metafórica: a da violência económica, sem ética nem limites; do homem a ungir-se espécime de nova barbárie, inquietante e perversa; escrita atenta à ascensão ideológica, às derivas hodiernas e extremas do sistema capitalista.
Um Perigoso Leitor de Jornais, de Carlos Tomé – Edição Artes e Letras