A compreensão

Correia da Fonseca

Perante o ataque à Síria da aviação norte-americana vagamente decorada com aviões britânicos e franceses, a generalidade dos países ditos ocidentais acrescentados com os complementos do costume exprimiram o seu apoio à operação. Portugal, não: a televisão informou-nos de que o nosso país optou por manifestar «a sua compreensão», desse modo marcando uma diferença que já havia acontecido quando, enquanto o Ocidente arrancava para uma espécie de competição a ver quem expulsava mais diplomatas, o governo português se limitava a chamar a Lisboa, «para consultas», o seu embaixador em Moscovo. Tais consultas já terminaram, espera-se naturalmente que tenham sido esclarecedoras, e a TV já anunciou o regresso do senhor embaixador à capital russa, normalização decerto com vantagens para ambas as partes como facilmente se adivinha.

Ainda assim, porém, e porque o assunto é sério, talvez convenha que seja objecto de alguma reflexão por parte dos cidadãos, espera-se que muitos, que não se limitam a ouvir o que a televisão lhes conta e a fazer desses recados uma absorção inteiramente passiva e até apressada porque o que interessa é saber se houve «mão na bola» ou «bola na mão», isto é, caso para penalty, no último jogo de futebol. Em verdade, para esclarecer tais dúvidas é que a televisão actual existe, não para se preocupar com bombardeamentos inseridos numa guerra que dura há tanto tempo que todos já nos habituámos a ela.

A dúvida

Contudo, parece que o caso foi sério, ou melhor, que o continua ser, pois a preocupação suscitada e as indignações que despoletou ainda não se extinguiram por esse mundo fora. Reduzida ao essencial, a questão é simples: num país do Médio Oriente apetitosamente dotado de vastos lençóis de petróleo, o governo há muito reconhecido internacionalmente como legítimo tem vindo a enfrentar o ataque de formações mercenárias abundantemente municiadas com armas e dólares pelo Ocidente made in USA.

Mas o tal governo não apenas é legítimo como também é teimoso, e resiste. Para mais, terá o apoio dos russos, e é sabido que os russos estão proibidos de cultivarem amizades para cá dos Dardanelos. É, pois, necessário derrubar aquele governo transgressor e, para isso, inventar contra ele indesculpáveis razões de queixa. A acusação do uso de armas químicas serve bem, mas sobrevém um contratempo: é designada uma incómoda comissão internacional para averiguar o fundamento da acusação. Será então o momento de «queimar etapas»: antes que essa comissão inicie o seu trabalho, bombardeie-se a Síria para agravar a situação.

E, chegados aqui, será adequado colocar uma dúvida: «compreender» o bombardeamento significa compreender os factos ou, diferentemente, ignorá-los e afinal dar ao ataque ilegal e criminoso um apoio que não se quer assumir? Fica a dúvida. E talvez a resposta na ponta da língua.




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