HCP – um «pauzinho na engrenagem» do fascismo

Manuel Jorge Veloso

Não mais o HCP deixou de constituir um lugar de atracção

A génese dos clubes de jazz, um pouco por todo o mundo, pode situar-se, sobretudo, no momento histórico em que esta música deixou de ser um folclore, um elemento de quase exclusivo divertimento, uma «música para dançar» em salões mais ou menos amplos e populares, para se transformar num género musical que, mantendo embora a sua matriz original, se tornou gradualmente uma forma de arte, como tal adequada a espaços de menor dimensão – dir-se-ia, mesmo, a uma espécie de «lugares de culto».

É certo que as transformações qualitativas do jazz implicaram de imediato, internacionalmente, uma natural transferência da sua fruição para as grandes salas de concertos, habituadas a albergar formas de audição recatadas, certamente próprias de expressões da «música erudita» que ali tinham lugar, com tudo o que isso implicava, até, de acentuada mimetização da divisão da sociedade em classes: a distribuição «criteriosa» dos menos e mais abonados pelos segundo e primeiros balcões, pelas segunda e primeira plateias, pela já elevada disposição das frisas ou pela superior distância dos camarotes, com o relegar «natural» das «classes mais baixas» para as «gerais» e as «torrinhas» de todos os Coliseus e São Carlos deste mundo.

Salvo raríssimas manifestações jazzísticas em cinemas e teatros nos anos 50 e 60, o desenvolvimento mais alargado da prática do jazz e a sua criação e fruição plena no nosso País verificar-se-ia já demasiado tarde, em particular após a imparável democratização da Cultura posterior à Revolução de Abril. Isto porque foram penosos os anos de resistência e de militância, em plena ditadura fascista, que os divulgadores pioneiros do jazz tiveram de passar para espalhar a mensagem trazida por esta música de Liberdade, nascida do encontro sui generis, nos EUA, da música oriunda dos primeiros escravos com a música popular dos primeiros colonos europeus.

Tudo começaria, de forma mais nítida, a partir da criação em Janeiro de 1950, do Hot Clube de Portugal, o primeiro clube de jazz existente no nosso País, cuja génese se ficou a dever aos esforços tenazes de Luiz Villas-Boas, a personalidade mais importante do nosso jazz, após um longo processo de aprovação, pelas autoridades fascistas, dos seus estatutos e, sobretudo, da imposição e aceitação dos seus objectivos: a divulgação e a prática do jazz. Isto num país que oprimia os povos das suas colónias e que iria estar envolvido numa criminosa e prolongada Guerra Colonial.

E foi a data da assinatura, por Villas-Boas, da proposta de sócio nº. 1 (em 19 de Março de 1948) que ficou a marcar a existência, para todos os efeitos, da criação do clube, comemorando-se este ano o 70.º aniversário desta data histórica, que também aqui se saúda.

A partir da sua criação, não mais o HCP deixou de constituir um lugar de atracção e convergência dos amadores de jazz portugueses, primeiro com a prática do jazz pela «prata da casa», depois já com a vinda de muitos músicos estrangeiros que tocavam com os portugueses, hoje cada vez em maior número, num criativo intercâmbio de experiências, intenso convívio democrático e, sobretudo, proximidade e quebra de barreiras entre os criadores e os seus públicos.

Por último, a criação da primeira Escola de Jazz, nos idos de 70/80, desencadearia, nas condições favoráveis do pós 25 de Abril, a expansão imparável de outras academias por todo o País e a criação de departamentos de jazz em escolas superiores das grandes cidades, seguidas por instituições congéneres espalhadas de Norte a Sul, naquele que pode hoje ser considerado um momento particularmente frutuoso na afirmação do jazz português.




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