Podem chamar-lhe pégada

Correia da Fonseca

Era o pleno Inverno, o País tremia de frio, algumas formas tradicionais de aquecimento doméstico punham vidas em risco aqui e além, cidadãos virtuosos lembravam-se de que os sem-abrigo existem. E a comunicação social, com o habitual relevo para a televisão, informava; espera-se que a partir de redacções aquecidas e decerto a partir de cabeças antecipadamente abastecidas. Informava, designadamente, que aquele frio que parecia querer trespassar-nos a roupa, se não a pele, era o «frio da Sibéria»; e aí muitos poderão ter intuído os motivos da sua óbvia malignidade, pois se houve tempo em que de Espanha não vinha nem bom vento nem bom casamento, há muito que é bem sabido que da Sibéria e seus arredores só podem vir sopros malignos, meteorológicos ou outros, embora sendo certo que nesta matéria já se viveram tempos piores, sendo óbvio que não podia perder-se mais aquela oportunidade para lembrar às gentes o quanto há a recear do que venha daqueles lados. Foi então a altura de o País passar a ansiar intensamente pela chuva, em primeiro lugar por causa da seca persistente e ameaçadora de outras desgraças, mas também porque a chuva vem sobretudo do Atlântico e é bem sabido que do lado do Atlântico vêm dominantemente coisas agradáveis e benéficas, desde o Pacto que obstinadamente continua a defender-nos de um outro Pacto há decénios já extinto até uma numerosa tralha audiovisual que em muitos aspectos nos vem moldando sem que demos por isso.

Um antigo medo

Terá havido, porém, quem tenha reflectido sobre as palavras (que nestes casos de defesa contra malefícios nunca completamente extintos devem ser sempre afiadas como navalhas e venenosas como as drogas usadas pelas classes altas do Renascimento italiano) e se dispusesse a melhorar o léxico utilizado. Surgiu então, na televisão e decerto também fora dela, uma outra designação para o frio que a Sibéria soprava sobre o virtuoso Ocidente em geral e sobre o Portugal cristão em particular: era a «besta do Leste». Então, sim, a situação ficou perfeitamente caracterizada. Não tanto, porém, quanto o terá suposto quem inventou essa tão expressiva fórmula, mas também enquanto sintoma em grau elevado do ódio que se mantém vivo contra realidades e factos não só já extintos mas também supostamente defuntos. A «besta do Leste» era a vaga de frio, é certo, mas a retomada satanização do Leste como lugar de onde provêm flagelos e horrores tende a ter outros tentáculos, certas associações, nas cabecinhas dos consumidores das quotidianas refeições mediáticas: retoma, enfim, a antiga mas ainda tendencialmente eficaz informação de que do Leste vêm «bestas». É a escolha do léxico a constituir-se involuntário sinal de um antigo medo ainda não extinto perante o que podia parecer-se com uma espécie de fenómeno contagioso. Também e sobretudo, é a pégada da presença de um velho ódio que lá terá as suas não assumidas razões. Enraizadas na efectiva percepção de que, como diria Twain, a propalada morte do que ocorreu no Leste e de facto persiste em maior ou menor grau por todo o mundo, tem sido muito exagerada.




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