Diálogo com uma pintura

Manuel Augusto Araújo

O terramoto de 1755 teve repercussões no mundo filosófico, científico e político

O Museu Nacional de Arte Antiga tem sempre motivos para ser visitado. Não só pelas suas colecções permanentes, merecedoras de serem (re)visitadas mas também pelas suas exposições temporárias.

Na semana passada foi inaugurada a exposição Anatomia de uma Pintura, sobre O Terramoto de 1755, de João Glama Stöberle, um dos mais meritórios pintores do barroco português.

A importância dessa pintura ultrapassa-a. O terramoto de 1755, uma catástrofe que destruiu Lisboa, ecoou por toda a Europa com enormes repercussões no mundo filosófico, científico e político. Aconteceu numa época de grandes transformações sociais quando o iluminismo e o capitalismo lançavam as bases das sociedades modernas nalguns países da Europa Ocidental.

Os primeiros embates em Portugal foram entre os jesuítas e o Marquês de Pombal. Os jesuítas dominavam o país espiritual e temporalmente. Controlavam o ensino, opondo-se às reformas do marquês que introduziam a investigação experimental e as ciências da natureza de acordo com os padrões científicos mais avançados na Europa. O jesuíta Malagrida escreveu um panfleto «Juízo da Verdadeira Causa do Terramoto» em que atribuía a catástrofe a um castigo de Deus pelas políticas do reino, ameaçando quem não contribuísse generosamente para os cofres religiosos com novos castigos divinos. Contrariava frontalmente o Marquês de Pombal que tinha proclamado que o sismo era um fenómeno natural, não tinha nada de religioso. O embate era político, acabaria com a expulsão dos jesuítas, o reforço dos poderes do marquês. No estrangeiro o debate era sobretudo filosófico. Rousseau e Kant procuraram explicações científicas para o sucedido, destruindo as especulações religiosas. Voltaire no «Poema sobre o Desastre de Lisboa» refuta as teorias de Poppe e Leibnitz de o terramoto ser uma consequência inelutável da natureza humana submetida à justiça de Deus. Em «Cândido ou o Optimismo» faz desembarcar os protagonistas, Cândido e o seu mestre Dr. Pangloss, em Lisboa no dia do terramoto. O jovem acredita que é o Dia do Juízo Final, o mestre uma questão vulcânica.

Nas artes visuais a iconografia é praticamente O Terramoto de 1755 de João Glama e as gravuras de Jacques-Philipe Le Bas, sobre desenhos de Pedegache.

Obra inacabada

A pintura de João Glama é uma obra inacabada depois de trinta e seis anos de trabalho. É uma panorâmica de todas as catástrofes que destruíram Lisboa. Pessoas de todas as condições sociais, abismam-se com o tremor de terra, os incêndios, o maremoto. São mortos, moribundos, gente aterrorizada a socorrer os sobreviventes, num cenário de ruínas.

O quadro restaurado por Teresa Serra e Moura, técnica de restauro do MNAA, que dada a escassez das figurações tem sido o mais utilizado para o representar o terramoto, está em exposição na Sala do Tecto Pintado, apoiado num profundo e esclarecedor estudo de Alexandra Markl e Celina Bastos que determinaram que o pintor se encontrava em Lisboa, na Igreja das Chagas tendo fugido para um descampado onde está agora localizada a Associação Nacional de Farmácias. Em tantos anos de trabalho Glama vai mudando perspectivas e personagens, como as análises de raio-X revelaram. Provavelmente o impacto do terramoto em Portugal e no mundo conduzem-no a alterações que não sendo substantivas não deixam de ser relevantes.

A exposição intitula-se Anatomia de um Quadro. De facto o trabalho realizado pelas historiadoras e pela técnica de restauro, a documentação reunida e sistematizada pela primeira vez dá nova perspectiva a essa pintura e à vasta obra de João Glama. Uma exposição que pode ser visitada até 27 de Maio onde vale ir para se perceber os labirintos da arte e as questões com que os artistas se confrontam, por vezes tão vastas que o pintor fica incapaz de acabar um trabalho.

 



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