O rentismo no sector eléctrico
ENERGIA Há já muitas décadas, diversas entidades públicas e privadas, organizações universitárias e sociopolíticas, bem como personalidades de vários quadrantes, demonstraram o interesse económico das fontes endógenas de energia, e, em particular, as renováveis, e fizeram-no num enquadramento independente da questão climática focada nos últimos anos.
Governo ainda não foi ao cerne da questão, enfrentando o colossal lóbi energético-financeiro
A análise que se propõe no presente texto, mais centrada no desvio rentista que o aproveitamento das energias renováveis1, principalmente a eólica, ainda continua a ter na produção de electricidade, não significa que o fenómeno seja exclusivo deste ramo energético ou, sequer, que seja o mais negativo em termos de sobrecustos.
Os CMEC – Custos para a manutenção do equilíbrio contratual, criados por Durão Barroso/Santana Lopes e aplicados por Sócrates/Manuel Pinho, que custaram, desde 2007, cerca de 2,5 mil milhões de euros aos consumidores portugueses de electricidade gerando lucros rentistas para a EDP, são um exemplo.
Antes dos CMEC havia os CAE – Contratos de aquisição de energia (ou PPA) introduzidos, aquando da profunda liberalização/privatização do sector, por Cavaco Silva/Mira Amaral/Catroga, no período de 1990 a 19952.
As centrais da Turbogás/Trustenergy e da Tejo Energia/ENDESA continuaram a manter-se, desde 2007, neste regime que lhes assegurou uma rentabilidade mínima de 7,5% do custo médio ponderado de capital (WACC).
As diversas centrais hidroeléctricas e termoeclétricas da EDP passaram a usufruir de CMEC mais remuneradores através de um processo político-empresarial criticável. Tanto mais que, o tandem entre cargos públicos e lugares em conselhos de administração e outros órgãos societais privados (bancos e eclétricas), deixou um rasto inequívoco.
A filosofia dos CAE foi também a de atrair investidores privados com boas e asseguradas remunerações do capital. Mesmo quando as centrais térmicas e grandes hidroeclétricas estivessem sem produzir, à espera da necessidade/oportunidade de entrarem na rede.
A central do Pego (Tejo Energia), que era da EDP e já estava em desenvolvimento desde 1987, foi vendida em 1990 ao grupo privado que considerou ter feito um dos melhores negócios de sempre.
É verdade que uma empresa, seja pública ou privada, a quem se coloque a oportunidade/necessidade de investir num grande centro electroprodutor (termoeclétrico ou hidroeclétrico), deverá ter garantias de que o enorme financiamento inicial necessário estará coberto por retornos assegurados durante vários anos.
Mas o grande desígnio desde 1987 foi limpar a EDP preparando-a para ser privatizada. Por isso, o governo desobrigou-a de investir em grandes centros produtores durante alguns anos, precarizando, aliás, o sistema electroprodutor.
Num estudo de 2012, realizado pela Universidade de Cambridge, mostra-se que tanto as centrais com CAE como as dos CMEC tinham elevadas taxas de remuneração: 14,22% (EDP), 13,23% (Tejo Energia) e 12,91% (Turbogás).
Contratos escandalosamente generosos
A explosão investidora em centrais eclétricas baseadas em energias renováveis e, em particular, na eólica, tem vindo a merecer, depois de um longo período laudatório, críticas incisivas.
Tais posições não radicam em objecções de princípio às renováveis, mas sim devido à forma, de cariz oportunista e excessivo, como proliferaram.
A questão é que as políticas públicas adoptadas conduziram a penosos efeitos para os consumidores e, também, ao desordenamento da rede eclétrica que torna a sua gestão mais difícil e onerosa, e isto não obstante a crescente introdução das designadas tecnologias inteligentes.
E se há que fazer sacrifícios face às questões ambientais e climáticas, porque razão os consumidores/contribuintes são penalizados e os empreendedores energético-financeiros beneficiados?
Aliás, o «mercado concorrencial» foi, afinal, centrado nos apoios/incentivos de natureza pública e garantística, através das designadas tarifas feed-in (FIT3), um dos vários mecanismos de incentivo possíveis para apoio aos produtores de electricidade a partir de energias renováveis, e que é praticado em vários países. Mas as FIT podem assumir formas e graduação muito diferentes.
Através delas obrigam-se as redes a comprar toda a electricidade renovável sempre e quando for produzida e por valores muito acima dos valores médios da electricidade colocada no mercado grossista. Mas a energia renovável adquirida pelo CUR – Comercializador de Último Recurso (EDP Universal) dá-lhe direito ao recebimento da diferença entre os custos incorridos na aquisição e as receitas obtidas com a venda da mesma. Ou seja, mais uma vez a privada não fica prejudicada.
O cardápio das políticas FIT, e outros incentivos, oferecem diversas opções.
Ora, em Portugal, os investidores instalaram-se quase sem riscos, sem terem que competir, salvo na fase de licenciamento/atribuição (as «concessões» foram atribuídas sem concurso até 2005/2006, através de simples registo administrativo PIP), e com resultados garantidos por largos anos através de contratos escandalosamente generosos.
As grandes empresas, principalmente a EDP, que actuam nos vários ramos, foram sendo beneficiadas a triplicar:
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Como produtoras com base nas renováveis: preços altos assegurados para tudo aquilo que produzam, mesmo que seja em excesso, tem que ser recebido e pago pelos operadores de redes de transporte ou de distribuição;
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Quando não há vento ou sol, recebem enquanto produtoras convencionais através da figura magnânima dos CAE/CMEC4 a uma taxa de remuneração de 14 a 15% do capital imobilizado;
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Como comercializadores, podem actuar no mercado grossista (MIBEL), fazendo em certas fases do diagrama de carga diário uma «gestão estratégica» baseada em trading especulativo.
Lucros fabulosos
e especulativos camuflados
O discurso político e empresarial pró-renováveis apenas foca a vertente simpática: diminuição da dependência dos combustíveis fósseis importados e responder à necessidade, transformada em obrigatoriedade moral e política, de diminuir as emissões de gases com efeito de estufa.
A Europa converteu-se à militância contra o «aquecimento global» e Portugal, como aluno dedicado, quis ultrapassar os mestres, mobilizando a sua classe «empreendedora» em prol de supostos interesses nacionais e mesmo planetários!
De acordo com esta visão, os consumidores/cidadãos são formatados, através de maciças campanhas mediáticas, para aceitarem suportar altos preços e tarifas, à laia de cripto-impostos energético-ambientais, supostamente destinados a salvar o mundo da «catástrofe climática», sem se avaliar quem é quem neste deve e haver planetário.
E sobretudo, camuflando os lucros fabulosos e especulativos que tal opção transporta no seu bojo.
E esconderam-se mesmo aspectos centrais, tais como:
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Que a exploração dos recursos renováveis viria a ser dominada, no essencial, por grandes grupos empresariais privados – mais tarde por fundos de investimento – com a geração de enormes remunerações de capital;
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Que as tarifas imputadas aos consumidores, principalmente aos domésticos, aumentariam brutalmente tanto devido aos incentivos oferecidos às empresas privadas que utilizam fontes renováveis, como em função de outros esquemas proteccionistas baseados em rendas económicas, como é o caso dos CMEC;
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Não obstante os aumentos tarifários, foi engrossando um défice que assume a forma de crédito da EDP, com o qual a eléctrica especula no mercado financeiro ganhando dinheiro, mas no final terá que ser pago pelos consumidores;
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Que a rede elétrica iria crescer de forma desequilibrada devido ao exorbitante número de centrais eólicas, cujas produções apresentam grande volatilidade/intermitência e estão espalhadas um pouco por todo o território nacional a fim de captar o vento lá onde e quando ele sopre.
Falta ir ao cerne da questão
A enorme trama legislativa, construída pelas centenas de diplomas legais publicados nas ultimas décadas tornou o regime jurídico da eletricidade num monstro labiríntico, cuja opacidade e percepção comportamental vale ouro para especialistas ao serviço dos privados.
O actual Governo constitucional assumiu no seu Programa a redução do preço da electricidade e do défice tarifário como prioridades, bem como a redução de encargos com sobrecustos futuros.
Teve já algumas declarações e posições interessantes, mas no fundamental tem governado por Portarias e Despachos, como, por exemplo, as Portarias n.º 268-B/2016, de 13 de Outubro, e n.º 41/2017, de 27 de Janeiro. Ainda não foi ao cerne da questão, enfrentando, de facto, o colossal lóbi energético-financeiro que não hesita em fazer ameaças e chantagens.
A remuneração económica de grande parte dos investimentos realizados foi projectada para patamares demasiado elevados, assumindo a forma de rendas garantidas e não de meros lucros económicos.
Em termos tarifários verifica-se que o sobre-equipamento eólico foi permitido com preços garantidos à volta dos 80 euros/MWh, que os cerca de 3 500 MW licenciados administrativamente à margem de concursos (PIP) têm uma tarifa, indexada à inflação, válida por 15 anos a contar de 2005 (em média), que andará, hoje em dia, nos 95 a 110 euros/MWh, e que os 2 000 MW licenciados, já através de concursos, têm uma tarifa média que rondará os 70 euros/MWh, válida por 15 anos, a partir de 2011. Neste último caso garantiu-se contrapartidas industriais e municipais e, ainda, um apoio de 70 milhões de euros para um fundo científico.
No caso fotovoltaico as tarifas bonificadas recebidas andam entre cerca de 295 e 350 euros/MWh, e nesta tecnologia, não obstante a descida gradual da tarifa média, as centrais têm rendimentos muito risonhos para os privados investidores.
O custo marginal da eletricidade produzida nas centrais térmicas a carvão andará nos 40 a 45de euros/MWh, que compara com o que se vem pagando aos produtores eólicos e fotovoltaicos.
Os preços da electricidade, no mercado diário (MIBEL/Portugal), situaram-se, em média, em 2016, nos 39,4 euros/MWh, face aos 39,7 euros/MWh espanhóis e aos 36,7 euros/MWh franceses.
Finalmente, deixar a referência aos proveitos estimados e permitidos pelo regulador a alguns dos principais operadores, durante 2018:
REN Trading: 134,5 milhões de euros
REN: 624 milhões de euros
EDP Distribuição: 3623 milhões de euros
EDO Serviço Universal (CUR): 1922,6 milhões de euros
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1 As energias renováveis são, em geral e na perspectiva abordada no presente texto, as fontes não fósseis renováveis, tais como: energia eólica, solar, geotérmica, das ondas, das marés, hídrica ( as grandes centrais hidroelétricas, sendo de energia renovável, não são abrangidas no conceito aqui analisado), biomassa, gás de aterro de RSU, gás proveniente de estações de tratamento de águas residuais, queima de RSU e biogás.
2 Os CAE eram/são contratos bilaterais entre as empresas produtoras e a REN; estão previstos no DL 182/95 art.º 15.º.
3 Em Portugal nunca houve uma expressão que traduzisse o conceito, ao contrário de França, onde se designavam por «Tarifs de rachat supérieurs au prix du marche», e em Espanha «tarifas reguladas superiores al precio de mercado».
4A ERSE remeteu ao Governo, em Setembro 2017, uma avaliação do regime CMEC que vigorou entre 1 de Julho de 2007 e 30 de Junho de 2017. Nestes 10 anos o valor pago pelos consumidores às grandes empresas eléctricas ascendeu a cerca de 2500 milhões de euros. Nessa avaliação, muito crítica, são identificados aspectos que a ERSE já tinha explicitado em 2004 aquando do parecer dado quanto ao projecto de diploma que criou os CMEC (Decreto-Lei n.º 240/2004, de 27 de Dezembro), mas que foram desconsiderados pelos governantes (primeiro-ministro Santana Lopes e ministro Álvaro Barreto; o trabalho de fundo foi realizado durante o consulado de Durão Barroso). De facto, os CMEC possibilitaram a passagem para um referencial menos exigente para as empresas com centrais electroprodutoras do que possibilitava o regime dos CAE, principalmente para a EDP, com um acréscimo de custo acumulado que se estima em cerca de 510 milhões de euros vertidos sobre os consumidores.