Centenário do I Congresso dos Sovietes de Deputados Operários e Soldados de toda a Rússia

Domingos Abrantes

REVOLUÇÃO O I Congresso de Deputados dos Sovietes de Operários e Soldados de toda a  Rússia, realizado na então cidade de Petrogrado, entre 16 de Junho e 7 de Julho de 1917 (novo calendário), teve enorme importância para o desenvolvimento da revolução, apesar das decisões tomadas não terem correspondido às exigências do momento, quando estava em causa o avanço da revolução ou o seu recuo.

As intervenções de Lénine tiveram enorme ressonância junto das massas

A importância e o significado deste congresso devem ser avaliados à luz do facto de as revoluções de Fevereiro e de Outubro de 1917 constituírem um processo único e inseparável ou, como disse Lénine, sem a Revolução de Fevereiro a Revolução de Outubro não teria sido possível, conclusão fundamentada na sua tese da correlação entre a luta pela democracia e a luta pelo socialismo.

Lénine tinha dedicado enormes energias ao estudo e generalização das experiências da Revolução de 1905/7, prestando particular atenção ao impetuoso activismo das massas em condições de processos revolucionários, ao papel dos sovietes e às questões do Estado, às forças motoras da revolução e sistemas de aliança e à estratégia da transformação de revolução democrática burguesa em revolução socialista.

Questões que vão estar em discussão no I Congresso dos Sovietes de Deputados Operários e Soldados de toda a Rússia, com a participação de 1000 delegados eleitos em representação de cerca de 400 sovietes, incluindo sovietes específicos dos diferentes ramos das forças armadas e de combatentes vindos directamente da frente de guerra.

Da extensa Ordem de Trabalhos (12 pontos) ressalta-se as questões fulcrais a discutir, como: a posição face ao Governo Provisório; a democracia revolucionária e o poder governamental; a preparação da Assembleia Constituinte; a questão agrária; e a questão da guerra.

Vivia-se então como que uma situação de impasse no agudo confronto entre os dois poderes nascidos com a revolução: o poder burguês representado pelo Governo Provisório e o poder revolucionário representado pelos sovietes. Confronto que se traduzia nas reivindicações de «todo o poder aos sovietes» e «todo o poder ao Governo Provisório».

Segundo os bolcheviques, a primeira correspondia à defesa da via do triunfo da revolução, a via da transformação da revolução democrática burguesa em revolução socialista, o que implicava a passagem de todo o poder aos sovietes, o fim da guerra, a expropriação dos agrários e grandes capitalistas, o desmantelamento do Estado herdado do czarismo, enquanto que a segunda representaria a via da morte da revolução, a via da continuação da guerra, do domínio dos agrários e banqueiros, a liquidação das conquistas alcançadas.

A situação da dualidade de poderes não podia manter-se. Acentuava-se a contradição entre a legitimidade revolucionária e a legitimidade institucional.

A contra-revolução preparava-se para a contra-ofensiva.

Uma situação original

A Revolução de Fevereiro tinha criado «uma situação – no dizer de Lénine – original e única dado o facto da revolução, pela sua natureza, ser democrática burguesa e já o não ser pela forma, na medida em que a intervenção das massas e o poder dos sovietes tinha impulsionado a revolução na Rússia para além das revoluções democráticas burguesas correntes.»

Esta realidade determinava que a natureza do regime democrático a implantar na Rússia não poderia ser a reprodução dos regimes democratas burgueses correntes, realidade que quem viveu a Revolução de Abril em Portugal pode avaliar facilmente, pese embora as especificidades próprias do processo revolucionário português.

A implantação de um regime democrático burguês tipo parlamentar era uma impossibilidade na realidade russa. As massas não só derrubaram o regime autocrático, como impuseram profundas transformações políticas, económicas, sociais e culturais e criaram formas de poder próprias: os sovietes de operários, camponeses e soldados.

O Soviete de Petrogrado, logo nos primeiros dias da revolução tomou decisões revolucionárias de grande alcance ao determinar que «em todas as suas tomadas de decisão política, a unidade militar está subordinada ao soviete de deputados operários e soldados e aos seus próprios comités»; ao dissolver os corpos de polícia; ao libertar os presos políticos; e ao colocar sob o seu controlo o Banco do Estado, a Casa da Moeda e outras instituições financeiras.

Os sovietes tomavam igualmente medidas concretas para organizar a produção, as cadeias de distribuição de alimentos, a organização de órgãos do poder.

A força armada dos sovietes privava o governo instituído do seu principal instrumento de poder para conter e esmagar a acção revolucionária das massas que tinham criado o embrião de um novo tipo de Estado, superior ao parlamentarismo burguês. Um Estado que não se opunha às massas, mas que fundamentava o seu poder na intervenção das massas.

Em conclusão: os sovietes tinham derrubado o poder czarista, dispunham de um poder real, mas paralelamente havia um poder oficial – o do Governo Provisório que, paradoxalmente, devia a sua existência à insurreição popular – representante da burguesia e de largos sectores da autocracia derrubada, aos quais se tinham ligado os socialistas revolucionários e os mencheviques que, concluindo não terem amadurecido as condições para «instaurar» o socialismo na Rússia, defendiam o sistema burguês parlamentar em nome do «normal desenvolvimento da história».

Revolução e contra-revolução

Quando se iniciaram os trabalhos do congresso, a questão crucial era a de se saber se do confronto entre a revolução e a contra-revolução (já a perfilar-se) triunfaria a via do poder revolucionário (o poder aos sovietes) ou o poder da burguesia (o poder do Governo Provisório).

Os delegados bolcheviques, que incluíam os mais destacados dirigentes do partido encabeçado por Lénine, participaram activamente nos trabalhos do congresso. Lénine interveio por duas vezes centrando-se nas questões tidas como fulcrais: a posição face ao Governo Provisório e a questão da guerra e da paz, apresentando todo um «programa» preciso e fundamentado para a passagem da revolução democrática burguesa a revolução socialista, cuja condição exigia a passagem imediata de «todo o poder aos sovietes».

As intervenções de Lénine – que durante aqueles três meses tinha aprofundado a teoria da revolução – tiveram enorme ressonância junto das massas populares de toda a Rússia.

Combatendo a fraseologia pseudo-revolucionária com que se procurava enganar as massas e iludir a não tomada de decisões conformes à defesa da democracia revolucionária, alertando para os riscos que corria a revolução, explicando os perigos que representava a ambiguidade da «dualidade de poderes», Lénine defendeu que na situação criada a revolução só podia triunfar contra os banqueiros, os agrários e o imperialismo se dispusessem de um poder revolucionário.

A passagem do poder aos sovietes significaria que na Rússia se tinha criado uma democracia de facto que contribuiria para a paz sem anexações.

Lénine defendeu que a vitória da revolução na Rússia teria um alcance universal e – avaliando o poder real dos sovietes – que a Rússia era o único país onde a passagem ao poder do proletariado se podia fazer de forma não sangrenta: «A passagem ao poder do proletariado revolucionário – disse – beneficiando do apoio do campesinato pobre é a passagem à luta revolucionária pela paz, sob as formas mais seguras, mais indolores que conhece a humanidade, a passagem a um estado de coisas em que o poder e a vitória serão assegurados aos operários revolucionários da Rússia e de todo o mundo».

De grande alcance foram as conclusões de Lénine de que – na base da análise das contradições inter-imperialistas e da profunda crise económica e social em que estavam mergulhados os principais países capitalistas – uma agressão externa dificilmente podia esmagar a revolução.

As principais propostas dos bolcheviques, representados por pouco mais de 10 por cento dos delegados, não vingaram nas votações do congresso, dominado por uma maioria de socialistas revolucionários, na altura o maior partido e já então aliado aos partidos burgueses no Governo Provisório.

Todo o poder aos sovietes

Ao rejeitaram as propostas bolcheviques da passagem de todo o poder aos sovietes, quando o congresso representava uma massa imensa de operários, camponeses e soldados organizados nos sovietes, com uma força real e autoridade política para tomar o poder, os socialistas revolucionários fecharam a possibilidade da tomada do poder por via pacífica.

Lénine e os bolcheviques estavam absolutamente seguros que as maiorias que se formaram no congresso já não correspondiam à vida real. O «programa» apresentado por Lénine teve uma enorme repercussão no interior do congresso (as votações a favor dos bolcheviques foram superiores ao número dos seus delegados, o que levou Lénine ironicamente a dizer que para os socialistas as votações significavam que dois mais dois eram três, enquanto que para os bolcheviques dois mais dois eram cinco) e nas massas de toda a Rússia.

Entretanto, o congresso, por iniciativa dos bolcheviques e a discordância dos socialistas revolucionários, tomou uma media da maior importância para a defesa da revolução ao decidir unificar num órgão único o soviete de operários e soldados, no qual os bolcheviques tinham fortes posições.

A avaliação dos bolcheviques sobre o agudizar da crise revolucionária era correcta. Crescentes massas populares compreendiam que a defesa do «desenvolvimento natural da história» significava a derrota da revolução, o domínio dos banqueiros e agrários, a não resolução do problema da terra e a continuação da guerra.

A repressão desencadeada contra os revolucionários e os bolcheviques, as tentativas de desmantelar os sovietes não impediram o desenvolvimento impetuoso da luta de massas sob as palavras de ordem: «Abaixo o governo dos capitalistas»; «Todo o poder aos sovietes de deputados operários, camponeses e soldados de toda a Rússia».

Aos sovietes estava colocada a questão «ser ou não ser». O derrube do poder da burguesia exploradora e do imperialismo foi colocado na ordem do dia pelo decurso do desenvolvimento do processo revolucionário.

A afirmação de Lénine em pleno congresso de que existia na Rússia um partido em condições de assumir o poder e que esse partido era o partido bolchevique, teve plena confirmação em Outubro de 1917.