Um erro de diagnóstico

Correia da Fonseca

Um sujeito que cumulativamente surge num programa de televisão e nas páginas de um jornal diário, o que é perfeitamente legítimo mas não deixa de ser um sinal, sentenciou há dias que «o ódio a Passos é que une a geringonça». Trata-se de um «opinion maker» que escreve bem mas pensa mal, e mais uma vez ele errou ao formular esta espécie de diagnóstico quanto à raiz da aversão que o povo português tem, com sólidas e conhecidas razões, ao cidadão que há cerca de ano e meio deixou de ser primeiro-ministro de Portugal, como toda a gente sabe excepto aparentemente ele próprio. Não é improvável que a utilização da palavra «ódio», sempre passível de conotação com sentimentos reprováveis, tenha resultado da intenção de semear um juízo negativo sobre os apoiantes da chamada «geringonça», porventura de sugerir algum pendor para «maus sentimentos» nos que respiram fundo e se alegram por se terem visto livres do ex-primeiro ministro. Mas não será difícil reconhecer que o fim de uma governação opressiva e verdadeiramente agressora suscita mais sentimentos de alegria que de ódio votado a quem por dispor de uma maioria parlamentar se aplicou a comportar-se como um tiranete. Os pulmões parecem encher-se de mais ar e de ar mais fresco quando um cidadão se lembra de que o «pesadelo Passos Coelho» foi afastado. É certo que o caminho ainda a percorrer é longo e difícil, mas uma etapa inicial e necessária foi cumprida.

Um sabor de vitória

Porque há factos que nunca serão excessivamente recordados, não seria de mais tentar inventariar aqui todas as duras e feias agressões cometidas pelo governo Passos Coelho contra a mais frágil parte da população portuguesa, mas não é possível. Lembremos apenas, num resumo amargo, que a muitos cidadãos foram tirados sucessivamente o posto de trabalho, a casa, os filhos, a esperança. Assim, não será absurdo que Passos Coelho seja objecto de alguma aversão talvez até temperada pelo espectáculo um pouco ridículo que ele tem vindo a dar em intervenções públicas de bandeirinha na lapela: quem ri com gosto de um adversário não estará muito disponível para odiar. Mas, de qualquer modo, o que «une a geringonça» não é ódio nem sequer um justificado desprezo, é uma outra coisa: é um sabor de vitória por ter sido repelida a ofensiva quase selvática, inescrupulosa, lançada contra direitos básicos da vida quotidiana; é ter sido feita prova pública de que a direita não tinha razão na sua prática verdadeiramente violenta e antipatriótica, obediente a ordens estrangeiras e adequada a inconfessáveis interesses nacionais. O que há perto de ano e meio percorre a maioria dos portugueses e explica a sua aprovação da «geringonça» não é nenhum sentimento de ódio: é alegria pela recuperação de direitos e de esperança. Não é fenómeno político difícil de perceber, mas poderá ser para a direita um facto político difícil de aceitar. De onde o expediente de adiantar uma explicação pelo ódio. Isto é: talvez uma explicação à sua própria medida.




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