A união faz a força em Setúbal
PARTICIPAÇÃO No dia 1 de Setembro de 2016 entraram em vigor as alterações ao regime do arrendamento apoiado que permitiram alcançar «uma maior justiça social». A nova legislação veio alterar a lei n.º 81/2014, imposta pelo anterior governo do PSD/CDS e contestada desde a primeira hora por muitos dos arrendatários afectados. Foi o caso dos moradores dos 13 bairros de habitação social de Setúbal. A luta, com resultados positivos, abriu novos horizontes a uma população que há cinco anos desenvolve um projecto pioneiro. Juntamente com entidades sediadas no território e serviços municipais, os moradores de cinco daqueles 13 bairros sociais estão a construir o programa «Nosso Bairro, Nossa Cidade», o que está a resultar numa alteração profunda do espaço físico e nas mentalidades. O Avante! foi falar com os protagonistas desta história que estão a levar mais longe a democracia política, económica, social e cultural.
Queremos que as pessoas tenham tudo aquilo a que têm direito
Num movimento organizado, depois de terem participado em várias reuniões de informação e esclarecimento, os moradores dos bairros sociais de Setúbal constituíram uma comissão para analisar aprofundadamente a Lei n.º 81/2014. Daqui resultou um conjunto de propostas de alteração, a que a Câmara e a Assembleia Municipal de Setúbal se associaram, assim como a Junta de Freguesia de São Sebastião, a União de Freguesias de Setúbal e a União de Freguesias de Azeitão. Paula Santos, deputada do PCP na AR, participou em muitos desses encontros.
As principais propostas elaboradas pelo grupo de trabalho setubalense para alteração da lei foram apresentadas em Janeiro de 2016, em audiência com a Comissão de Ambiente, Ordenamento do Território, Descentralização, Poder Local e Habitação, e tidas em conta pelos grupos parlamentares que apresentaram projectos de lei com vista à revisão do regime de arrendamento.
«Foi a primeira vez na história da Assembleia da República que apareceu um grupo com uma proposta completa, diferente da proposta de lei, que foi mais longe do que todos os partidos. Nunca um movimento popular tinha conseguido mudar uma lei. Foram dois acontecimentos absolutamente únicos», recorda Carlos Rabaçal, vereador com o pelouro da Habitação na Câmara de Setúbal.
Uma das propostas contemplada reconhece às regiões autónomas e às autarquias o direito de poderem aprovar regulamentação própria para adaptar a lei «às realidades física e social» das habitações e bairros, mas sem conduzir a normas «menos favoráveis» para os arrendatários.
Injustiça
Entre muitos outros aspectos negativos, a Lei 81/2014 do PSD/CDS permitia que as habitações afectas à renda apoiada tivessem aumentos incomportáveis para os moradores.
«Havia pessoas que, dos 200 euros que pagavam, passaram para os 600, 700 e 800 euros mensais», lembra Maria das Dores Meira, presidente da Câmara e candidata ao mesmo cargo nas próximas eleições autárquicas. A aprovação das alterações aquela legislação, em 2016, permitiu que, ao invés do rendimento bruto, a fórmula de cálculo das rendas tenha em conta o rendimento líquido das famílias. «Até houve pessoas que diminuíram o valor da renda», sublinha a presidente, lembrando que em Setúbal a Câmara Municipal não agravou as rendas apoiadas mesmo quando a anterior Lei introduziu alterações nesse sentido.
Luta
Maria Jorgeta, uma das moradoras envolvida no projecto, fala da injustiça que era o despejo fácil de inquilinos, intitulado de «administrativo». «Estamos a falar de pessoas, na maior parte dos casos idosos, que foram intimadas para ir morar para outras casas, mais pequenas. Fazia de conta que eram um trapo velho e roto», denuncia. A moradora do Bairro da Bela Vista descreve outra situação, a das rendas: «Muita gente, para pagar a renda, deixou de tomar os medicamentos e outros deixaram de comer». «Lutámos sempre contra isso porque era uma injustiça», afirma Maria Jorgeta, valorizando o apoio das autarquias [do concelho de Setúbal] que «estiveram sempre ao nosso lado».
José Ribeiro, morador no bairro Afonso Costa há 68 anos, destaca o facto de terem sido «feitas algumas alterações a uma lei que era injusta e não servia os interesses dos moradores». No entanto «ainda há muito a fazer e alguns obstáculos por ultrapassar», garante, manifestando confiança em que «com a nossa luta e perseverança conseguiremos alcançar os nossos objectivos».
O poder reivindicativos dos moradores dos bairros de Setúbal foi construído ao longo dos últimos anos com o apoio da autarquia, de maioria CDU, que tem vindo a dinamizar um conjunto de projectos para responder às urgências sociais do concelho.
Um desses programas chama-se «Nosso Bairro, Nossa Cidade» e tem como objectivo promover a participação das comunidades em dinâmicas de bairro, criar sentimentos de pertença e de inter-ajuda entre moradores, reforçar redes de suporte social, assim como a autonomia da população nas dinâmicas do bairro.
O «Nosso Bairro, Nossa Cidade» assenta no princípio de que toda a acção deve ser protagonizada pelos próprios moradores, gerando a participação na tomada de decisões que a eles e à respectiva comunidade dizem respeito, promovendo a autonomia, a responsabilidade e o crescimento colectivo.
O programa tem como eixos estratégicos a «intervenção com jovens», «educação, formação e emprego», «imagem e visibilidade», «vida em comunidade» e «promoção da participação das pessoas».
As acções incluem, entre outros, «encontro de moradores», «equipas comunitárias de higiene urbana», «férias no bairro», «atelier de tricot e crochet», «festival de música “Mudar o Olhar”», «descobrir em comunidade» e «organização de moradores».
Participação
Tudo começou em 2012, num dia quente de Agosto, na Bela Vista.
«Chamaram-me para vir falar com o senhor Nicassio, que se preparava para fechar uma varanda com o objectivo de alargar a sua casa», o que «não era legal», recorda Maria das Dores Meira, presidente da Câmara de Setúbal.
À volta de um assador feito com metade de um bidão, que preparava umas entremeadas, juntou-se à conversa uma outra moradora. A autarca explicou a ambos que o «futuro» passava pela demolição daquele e de outros bairros e que, assim que se encontrasse um investidor seriam feitos novos prédios integrados na malha da cidade.
«A senhora ficou muito comovida e começou a chorar. Disse que ali nasceram os filhos, que o bairro era a sua vida e que os vizinhos a sua família», lembra Maria das Dores Meira, que lançou então um desafio: «Se forem capazes de recuperar o bairro ele não vai abaixo».
Ao repto lançado os moradores, organizados, responderam com «centenas e centenas de reuniões» que se realizaram com a presença de eleitos e técnicos da autarquia. «O caminho foi-se fazendo. Começaram a constituir-se interlocutores por prédio. Hoje são mais de 300, nos bairros todos», valoriza.
As primeiras intervenções começaram no bairro «azul», o mais pequeno dos três da Bela Vista. «Assim que a autarquia lhes facultou os materiais solicitados, os moradores – lusos, ciganos, africanos, alguns deles pedreiros, canalizadores, electricistas, pintores – puseram mãos à obra pela melhoria das suas condições de vida. Foi um sonho tornado realidade ver aquelas pessoas a transformarem o seu bairro», afirma a presidente. Depois, adianta, «a transformação continuou nos outros bairros», passando para as áreas da cultura, do desporto, da intervenção no espaço comum.
Entre-ajuda
Inicialmente, este projecto contemplava apenas os espaços comuns, como as ruas e os pátios. Recorde-se que, num processo de cedência, em jeito de presente «envenenado» iniciado pelo anterior executivo do PS, as casas que o Instituto de Gestão e Alienação do Património Habitacional do Estado passou para o município estavam muito degradadas e a precisar de obras.
Posteriormente, algumas dessas habitações foram adquiridas e outras continuaram sob a responsabilidade do município. Em ambos os casos os moradores quiseram fazer mais e melhor. No bairro «amarelo», por exemplo, decidiu-se fechar os vazados [as entrada dos prédios]. «Cotizaram-se para comprar portas, campainha; outros, mais sofisticados, um vídeo-porteiro.», descreve Maria das Dores Meira, informando que a autarquia forneceu materiais «para se fazer as paredes, como cimento, areia e tijolos, e as tintas».
Entretanto, de um momento para o outro, tudo começou a transformar-se, até a maneira como as pessoas de relacionavam. Isabel Sobrado lembra que quando foi para ali morar não «havia escala de limpeza» e que «agora há». Contou-nos ainda que, durante uma intervenção no prédio, como representante dos moradores, fez um documento no seu computador onde pedia que não se efectuasse descargas durante os trabalhos. «As pessoas têm que se respeitar e dar a mão na causa do bem comum, no que faz falta», afirma com convicção.
Também a D. Laura – que veio de um bairro clandestino para ali – tinha algo para dizer sobre o «Nosso Bairro, Nossa Cidade». «Hoje somos mais felizes porque a autarquia fala connosco olhos nos olhos, não de um pedestal. Quando apareceu este projecto o bairro desenvolveu-se de uma maneira espantosa. Começaram a melhorar tudo, as ruas, os jardins, coisas que não existiam», frisa, manifestando grande orgulho num jardim que ela e os seus vizinhos construíram. «Até as enxadas para cavar as terras foram compradas com o dinheiro das nossas quotas», valoriza a angolana.
Projectos fundamentais
Os moradores da Bela Vista estão a desenvolver o Garrbage (Grupo de Acção pela Recolha, Reabilitação e Reutilização de Bens Aproveitáveis – Gerações Ecologistas), projecto criado no âmbito do programa municipal «Nosso bairro, nossa cidade» que dá uma vida nova a bens inutilizados, como móveis, brinquedos e roupa.
As peças reabilitadas são encaminhadas para quem necessite, trocadas ou vendidas a preços simbólicos, de modo a compensar quem efectuou a reabilitação, mas, principalmente, para fazer face aos gastos com os consumíveis utilizados, como pregos, tintas e colas.
Entretanto, o Garrbage tem uma nova loja, no Mercado 2 de Abril, em Setúbal. Os interessados podem saber mais em https://www.facebook.com/Garrrbage/?fref=ts.
Saúde
«Saúde no bairro» é outro dos projectos que procura envolver directa e colectivamente os moradores – da Bela Vista, Alameda das Palmeiras, Forte da Bela Vista, Mantelhadas e Quinta de Santo António – na melhoria do acesso a cuidados de saúde. O projecto surgiu após a realização do I Encontro de Saúde, iniciativa organizada pelos moradores em parceria com a autarquia, a Cruz Vermelha Portuguesa, a Escola Superior de Saúde e o Agrupamento de Centros de Saúde da Arrábida. Em debate esteve a alimentação das crianças, a higiene e o apoio à terceira idade, recorda Carlos Rabaçal, vereador na Câmara Municipal.
Juventude
Também a juventude está profundamente envolvida no programa. Um grupo de jovens da Bela Vista promove, todos os anos, com o apoio da autarquia e da Junta de Freguesia de São Sebastião, o «Festival Mudar o Olhar», certame de convívio e partilha multicultural. Sara, uma das dinamizadoras, começa por informar que são convidados todos os anos artistas de fora, que aceitam o desafio para cantar e dançar estilos como o rap criolo, afro house, kuduro e kizomba, para depois dizer que o objectivo é «incentivar os jovens», para que, dando o exemplo, «os mais pequenos sigam os nossos passados». «Queremos que as pessoas, também do bairro, olhem para os jovens de uma maneira diferente. Havia muitas notícias negativas do bairro e nós queremos mudar isso», acrescenta.
Seedorf, assim conhecido por todos, apresentou por seu turno o projecto «Férias no bairro», que proporciona, nas férias escolares, actividades diversas de ocupação de tempos livres para os mais novos.
Fazer as pessoas sorrir
No Forte da Bela Vista – com uma vista privilegiada para o mar – até um boletim informativo já existe, feito para informar aqueles que ali habitam. Um dos fundadores da comissão instaladora da associação de moradores, olhando para o futuro, sem esquecer o muito que já foi feito, anuncia que se pretende ver realizado, muito em breve, o «passeio pedonal do Forte». Destaca, de igual forma, a 2.ª edição do «Sabores do Bairro», que decorreu em Setembro. A iniciativa promove a gastronomia e os ritmos das diferentes raízes culturais dos moradores.
Por falar em gastronomia, Luísa, moradora no Bairro das Manteigadas, ensina as crianças a cozinhar, o que a deixa «muito feliz», por «poder ensinar os mais novos os sabores do seu país».
A conversa vai-se desenrolando na «Nossa Casinha», na Alameda das Palmeiras, um espaço para o desenvolvimento de actividades lúdicas e pedagógicas, vocacionado especialmente para crianças e jovens. Francisco Rosário é o «responsável» por aquele espaço. «Esta “casinha” é nossa», afirma o mais velho daquele grupo, valorizando «o trabalho desenvolvido pela autarquia». «Quando cheguei a Setúbal em 1974 não havia nada. Só existia o centro», recorda.
Êxito sem paralelo
Para Nuno Costa, presidente da Junta de Freguesia de São Sebastião, onde se concentra a maior parte dos bairros, o programa «Nosso bairro, nossa cidade» é um êxito incomensurável; dá «mais trabalho» à autarquia, mas também «vivemos muito mais satisfeitos». «Simplifica, acima de tudo, a vida das pessoas que cá vivem e é para isso que aqui estamos», afirma, destacando a «participação popular» e a «intervenção cívica» da população neste projecto.
Maria das Dores Meira destaca o facto de, no País, não existir «coisa idêntica», sendo que este é um programa que continua a crescer, sempre com o objectivo de «resolver os problemas da comunidade». «Estamos a fazer o caminho para encontrar felicidade e bem-estar para as pessoas», disse, acrescentando: «Queremos que as pessoas tenham o máximo do que têm direito e sintam que são setubalenses por direito. Não há aqui excluídos.»
Por seu lado, Carlos Rabaçal informa que «estamos a meio» de um programa que tem um horizonte de 10 anos. «Noutras cidades, há instituições que decidem e dizem o que é que os moradores devem fazer. Aqui o fenómeno é completamente invertido em relação ao que é habitual. São as pessoas dos bairros que decidem».