D. Quixote de La Mancha, pelo Intervalo – Grupo de Teatro
Homem de coração opresso pela suja realidade que o persegue
Ao teatro cabe, como Shakespeare, através do seu Hamlet, o definia, oferecer um espelho à natureza, mostrar à virtude os seus próprios traços, ao vício a sua própria imagem, e a cada época do tempo que passa a sua forma e fisionomia particulares. O Homem, na sua inquietude existencial, inventou a literatura, e o teatro, para resgatar a memória, para se conseguir vingar, reflectindo-o e perpetuando-o, do tempo que lhe foi dado viver – e, nas mais altas expressões da sua criatividade, como forma última de justiça, de exigência moral e de desenvolvimento crítico e sensitivo dos seus concidadãos.
Estas duas premissas conceptuais, espelho de vícios e virtudes e o sentido de arte colectiva, têm sido uma constante nos espectáculos que o Intervalo – Grupo de Teatro, dirigido por Armando Caldas, vem criando ao longo de 48 anos de actividade, primeiro no espaço do 1º. Acto Clube de Teatro, em Algés e posteriormente no Auditório Lourdes Norberto, em Linda-a-Velha. Ambos, o então 1º. Acto e o actual, são espaços quase mágicos (o Teatro é uma arte de prestidigitadores) onde a ligação entre actores e público, essa permanente, orgânica e estimulante cumplicidade quase sempre acontece. Acontece porque Armando Caldas, contrariando a estética festivaleira do visual frenético, impõe, sensível e inteligentemente, o poder da palavra, do texto teatral como pretexto imanente para a elaboração dos seus espectáculos, do todo teatral, para que, desse modo, o jogo se estabeleça no território luminoso das palavras, as deste D. Quixote, em particular, e a comunicação actor/público se estabeleça de modo tocante e lúcida.
Ao escolher o texto clássico de Miguel de Cervantes (1547/1616), acrescentando-lhe passagens de versões mais próximas do nosso tempo, de António José da Silva, o Judeu, passando por Orson Welles e pelos italianos Rafael Azcona e Maurício Scaparro, Armando Caldas constrói um texto expurgado do picaresco, do anedotário desse cavaleiro lunático de triste figura, da lança inútil, no dizer de José Gomes Ferreira, transformando-o numa personagem lírica, angustiada, atenta e sensível aos males do mundo. Não já, ou apenas, o cavaleiro sonhando absurdos combates com as sombras e moinhos de vento, mas o homem de coração opresso pela suja realidade que o persegue, o idealista carregando os paradoxos existenciais, mas também o homem comovente, o mendigo (no sentido que Holderlin lhe atribui) sonâmbulo que almeja o patamar possível da dignidade e da justiça. Enquanto Quixote persegue a utopia Sancho transpõe a fronteira do onírico para enfrentar a realidade da sua condição. E é esse confronto dialéctico entre utopia e distopia que torna este espectáculo actual e tocante.
O D. Quixote, elaborado e encenado, com saber e arguta sensibilidade, por Armando Caldas, não seria possível sem o contributo precioso dos actores, todos de grande qualidade, que constituem o colectivo do Intervalo – Grupo de Teatro. Mas justo é aqui salientar o Quixote, de Miguel de Almeida, pelo rigor interpretativo, o registo certo da voz e dos gestos, pela máscara, pela permanente angústia que o olhar transporta, mesmo quando, a espaços, é tocado por desarmante e distanciador non-sense, pelo irrepreensível recorte físico da personagem; e a preciosa composição de um Sancho Pança, manhoso e grotesco, rebelde e sabedor dos declives do mundo, canalha e desgraçado, que esse enorme actor Hélder Anacleto, cujo regresso ao palco de Linda-a-Velha se regista com agrado, superiormente caracteriza.