«Europa 39»

José Carlos Faria

A personagem inquietante do Estranho Cliente representa Hitler

Europa/39 é a mais recente produção do Teatro da Rainha, montada com base nas peças de Bertolt Brecht, «Dansen», «Quanto Custa o Ferro» e rascunhos de 1939, escritos no exílio na Dinamarca e na Suécia, à beira de rebentar a II Guerra Mundial. Nestes textos de agit-prop denuncia-se o perigo que significava a postura beligerante da Alemanha nazi e a política de neutralidade dos governos escandinavos. Esta parábola premonitória dá também nota de umas quantas coincidências actuais perturbantes, mesmo que Marx tenha observado que a História não se repete, porque acontece primeiro como tragédia e depois como farsa. Recorre-se pois à historicização com o propósito de revelar as coisas por detrás das coisas, isto é, pôr à vista o que o visível não explica, porque o teatro, ao divertir e ensinar, «é um outro lado da política, faz emergir pensamento pelos seus meios».

Nas peças a personagem inquietante do Estranho Cliente representa Hitler a propor pactos de amizade que não respeita, enquanto compra ferro ao comerciante Suecson (cujo oportunismo, cegueira e hipocrisia só quer vender mercadoria), para se armar e assaltar os vizinhos, vistos como inimigos potenciais, justificando essa agressividade com mentiras e desculpas inventadas. Trump age de forma semelhante, contra tudo e contra todos, vendo por todo o lado ameaças e imaginando-se cercado de riscos, exagerados pela pós-verdade, propaganda e tentativas de cercear a liberdade de informação a que recorre.

No espectáculo, o real surge através de imagens documentais projectadas e com um Pessimista, que, mais uma vez em tempos sombrios, lê notícias actuais: «Trump defende o aumento do arsenal nuclear até que o mundo ganhe bom senso! A extrema-direita europeia espera vencer as eleições em 2017 e criar uma nova ordem!».

Esta ideia de Nova Ordem Europeia, introduzida em 1941/43 pelos ideólogos de Hitler, queria uma «cooperação económica» dirigida pela Alemanha que manejaria a seu favor as taxas de câmbio e controlaria os bancos centrais dos países ocupados. Nessa Europa sob domínio do estado mais forte, avançou-se até com um embrião de tratado – o Acto da Confederação – o qual eliminaria passaportes e vistos, bem como taxas aduaneiras, visando a segurança do mercado constituído por um bloco comercial e financeiro em que o marco seria a moeda estável. Irresistível, comparar com o modelo da UE.

Veja-se a fala final do Estranho Cliente: «Desejo – estou habituado a que os meus desejos se realizem – que seja aqui celebrado um acordo e que constituam uma associação. De outro modo nem o ferro, nem os arenques, nem a carne de porco me serão entregues pontualmente. Povos irmãos: uni-vos e assim por diante. Momento histórico! Está fundada a vossa união. A partir de agora as vossas entregas de mercadorias far-se-ão em comum».

Por vezes a realidade imita a ficção!

No Congresso dos Povos pela Paz, realizado em Viena em 1952, Brecht dizia:

«O pavor mundial dos anos 40 parece esquecido. Muitos dizem: as chuvas de ontem não me molham. É esta apatia que temos de combater. Repitamos sempre aquilo que já foi dito mil vezes, para não haver o risco de o termos dito uma vez de menos! Renovemos os nossos alertas, mesmo se eles nos deixam na boca um gosto a cinzas! Porque a humanidade está sob a ameaça de guerras ao lado das quais as precedentes parecerão frustes tentativas, e essas guerras rebentarão de certeza se não quebrarmos as asas dos que estão a prepará-las à vista de todos».

O ventre imundo donde saiu a Besta ainda é fecundo…




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