Dias Comuns VIII
– Livro das insónias sem mestre,
de José Gomes

A arte de anotar os dias

Domingos Lobo

Eu
para aqui esquecido no século XX
enviado especial do Pesadelo a mim mesmo,
sozinho
vigilante
vejam:
Testemunha de olhos secos

José Gomes Ferreira, é, seguramente, um dos nomes cimeiros da lírica portuguesa do século XX, um exímio manipulador de metáforas, driblando, como poucos, os signos imagéticos da linguagem poética, nascido no Porto a 9 de Junho de 1900. Tenho a idade que o século vinte tiver, portanto, dizia quando instado a pronunciar-se sobre a idade, acrescentando com ironia, em jeito de fuga: Até 2000 ainda espero... Depois desisto. Partiu, calmamente, anos antes da viragem do século, mas não sem ter visto florescer os cravos de Abril e essa Revolução Necessária pela qual ele, e todos os homens bons e justos da sua geração, tanto lutaram.

Poeta do real transfigurado, num lirismo de água puríssima, a tocar por vezes o surrealismo (como nos poemas de Eléctrico) para que esse dúctil e magoado olhar se ampliasse, prolongasse a sua percepção imediata, o que para além dele estava em dor, raiva, inquietação; assumindo na escrita a responsabilidade do intelectual perante o seu tempo, perante a história e os seus dramas, as safadezas dos mandantes, do fascismo, ao caso, e dessas malfeitorias dar notícia revoltada, ora perplexa e melancólica, ora imbuída de sarcasmo e auto-comiseração (por si, pelos companheiros de jornada, pelo tempo de iniquidade social que lhe coube viver).

Comecei a lê-lo a partir desse livro incontornável de jactância e lucidez analítica, de humor rasante e magoado, que são as histórias de vagabundagem pela Lisboa de início dos anos 1950, alinhadas no livro O Mundo dos Outros. Não mais parei de o ler. E ele, o seu modo discursivo, a forma como o verbo nele se transfigura, como se língua própria, não pára de nos surpreender.

Não só o discurso poético releva o ético-político, como as suas memórias disseminadas por vários volumes da sua poliédrica obra, memória que é a um tempo autodiegética como assume uma desconcertante vertente sarcástica na negação do real, ou seja, há na poética e na prosa de José Gomes Ferreira uma constante lógica negativa que percorre esse discurso, transformando a mecânica feroz dos quotidianos que o autor percepciona, no elemento central de um anti-discurso que inverte, pela distanciação analítica que o enforma, a plenitude do lírico que transporta.

A matéria fecunda do discurso narrativo e poético de Gomes Ferreira, inscreve-se, como matéria e essência, na sua incursão, quase grito dilacerante, nos dias que viveu e o modo como a sua arte poética os aborda e reconhece, caustica e transfigura, e por eles, dos tempos de menino (uma memória feita de prodígios que atravessa grande parte do nosso século XX), aos da idade adulta, se deixa absorver e contaminar; pela expressão formal de um percurso de vida singular, de afirmação cívica e crítica no plano político, e de debate literário fecundo e exigente com os seus pares e, dessa experiência, dessa passagem pelas veredas da vida, transpor essa bagagem, esse Relatório de Sombras para a literatura, sem descuidar a fidelidade aos valores que imprimiram os temas marcantes, as preocupações sociais e estéticas de uma geração que se fundaria posteriormente na atmosfera, como refere Óscar Lopes, do neo-realismo; arrastando nesse pródigo fluxo inventivo e inquiridor autores como José Rodrigues Miguéis e Irene Lisboa.

O presente volume, o oitavo de Dias Comuns – Livro das Insónias sem Mestre, prossegue a marca identitária, o lado solar da prosa de José Gomes Ferreira, dos seus métodos de análise, de anotador privilegiado dos dias da vergonha, para que a essência do tempo vivido, mesmo o das coisas mais singelas do quotidiano, se não perca na voragem dos meses e dos anos.

Este livro percorre o espaço temporal de 17 de Agosto de 1969 a 31 de Janeiro de 1970. Atravessa os meses que antecederam as eleições para a Assembleia Nacional, com a CDE a fazer frente aos esbirros do fascismo e a tentar denunciar a farsa eleitoral. Duas breves passagens da realidade vivida nesses primaveris dias, anotadas por Gomes Ferreira: Há dois dias, quando Rui de Oliveira – genro de Joaquim Namorado – saía da CDE para distribuir listas, foi raptado por cinco legionários que o levaram para o Quartel e lhe deram uma coça. Quando o soltaram, dirigiu-se a casa do Marcello – que não o recebeu. Em outra passagem, igualmente significativa: O João José Cochofel, o Carlos (de Oliveira) e o Abelaira receberam ameaças do Esquadrão da Morte – organização legionária que tenta espalhar o medo – a grande arma do fascismo.

Ainda deste período, o das eleições de Novembro de 1969, saliento uma nota em que, apesar do clima intimidatório que o fascismo impunha aos seus opositores, o humor não deixava de constituir forma de intervir sobre a realidade: O Marquês de Fronteira é um aderente da CDE e interveio em alguns colóquios onde se discutiu a Lei Agrária.

Numa dessas sessões declarou a certa altura: – 80 por cento da terra pertence aos grandes proprietários. Aqui, parou e comentou: – Devo dizer, envergonhado, que 15 por cento dessa grande propriedade me pertence. E ainda, percorrendo esta linha de humor corrosivo, quando, sabendo-se que quase todos os filhos dos aderentes da CEUD pertenciam à CDE, perguntou ao neto Pedro José:

Ó Pedro: és da CDE? – Não. Sou do Benfica... Porquê? Porque vence quase sempre. Apreciei o rigor deste quase.

Livro feito, como outros, da incansável capacidade que Gomes Ferreira tinha para anotar os dias e os transformar em coisas nossas e perenes, em obra literária, mesmo quando esses dias apenas lhe causavam repulsa e indignação. Livro que percorre os anos de agonia lenta do fascismo, da sua incapacidade de se ajustar ao tempo, de um mundo e de uma geração que já não se identificava com os métodos persecutórios de governantes anquilosados, de ultras conservadores vergados ao peso da sua incapacidade para resolver os problemas prementes do País: o desenvolvimento, a economia, a guerra nas colónias, a educação. Todas estas questões, passando por anotações emotivas, de sincero companheirismo e solidariedade, como o da morte e exéquias de Alves Redol, são abordadas de modo factual por José Gomes Ferreira neste seu diário de dias insanos e cruéis, polvilhado de nomes que fizeram e resistiram aos piores e bárbaros anos do nosso século XX, que nos deram esperança, palavras, músicas, armas para enfrentarmos e construirmos o futuro: Mário Castrim, Carlos de Oliveira, Abelaira, Maria Judite de Carvalho, Cochofel, Lopes-Graça e tantos mais.

Nomes que não se perderam na voragem do tempo, que caminham ao nosso lado graças a livros como este.

Dias Comuns VIII – Livro das Insónias sem Mestre, de José Gomes Ferreira – Editora D. Quixote/2017

 



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