A operação Alepo

Correia da Fonseca

Ao longo de muitos e tristes dias, aos ecrãs dos nossos televisores têm chegado imagens terríveis de Alepo, a cidade síria que tem vindo a ser disputada bairro a bairro, rua a rua, talvez casa a casa, pelos chamados grupos rebeldes, de facto filhotes dos Estados Unidos e seus satélites na região, e pelo exército sírio fiel ao governo de Bashar-el-Assad. São imagens que dão testemunho de como todos os direitos humanos estão a ser violados ali, em Alepo, como aliás em toda a Síria. Parece provável, até normal, que perante a brutalidade dessas imagens a generalidade dos telespectadores nem sequer se pergunte como é que tudo aquilo começou, qual é a raiz da desgraça quase apocalíptica que se abateu sobre a Síria: a indignação perante aquele espectáculo, a consternação perante o número de massacrados, a comiseração pelos que vemos ainda sobrevivos sem que saibamos por quanto tempo, revela-se bem mais forte do que o eventual pendor para fazer perguntas. Contudo, as imagens vêm completadas pela resposta que nos é dada quer em simultâneo quer em diferido: a culpa é da Rússia que, apoiando o governo legítimo e até há não muito tempo reconhecido internacionalmente, impede o fim da guerra que terminaria pela derrota de Assad, porventura pela sua execução, e a instalação em Damasco de um governo dos «bons», isto é, servidor e amigo do poder euroatlântico e seus anexos.

Um tácito complemento

São particularmente pungentes as imagens que nos dão conta do inferno a que as crianças de Alepo estão condenadas, tão terrível e implacável que bem se justificará que nos perguntemos se hoje ainda haverá crianças em Alepo ou, alterando a interrogação, se as crianças que eventualmente ali sobrevivam ainda são crianças ou se alguma vez poderão voltar a sê-lo. Espectadores das muitas guerras que têm vindo a ocorrer pelos diversos lugares do mundo, já nos conformámos um pouco com a realidade de gente morta cujas imagens a televisão nos traz. Mas as crianças, senhores?!, como exclamaria o poeta; as crianças, por que não são protegidas, poupadas, salvas? É claro que sabemos a resposta: é a guerra, a culpa é da guerra! Mas decerto por entender que a resposta é óbvia mas incompleta, a informação televisiva que dia a dia nos é fornecida injecta um tácito complemento que considerará fundamental: é a Rússia. O acervo de notícias contraditórias acerca da pausa nos combates que haveria de permitir a evacuação de sobreviventes, as informações sobre alegados bombardeamentos russos e os silêncios acerca dos «erros» cometidos pelos aviões norte-americanos, tudo isso surgindo como acréscimo ao horror da guerra, instila nos telespectadores desprevenidos, isto é, não esclarecidos, a convicção de que «a culpa é dos russos» que teimam em defender Assad, sujeito que não é suficientemente democrático para os exigentes critérios ocidentais aliás abundantemente exibidos nos mais diversos cantos do globo. Isto, tanto mais que a Rússia é um lugar distante, que não tinha que se ingerir ali. Nunca a televisão nos informou de quantos milhares de quilómetros vão de Damasco a Moscovo e de Damasco a Washington, mas há um permanente dado implícito: os russos são maus, aliás ainda cheiram a comunismo, ponto final em qualquer dúvida. E a prova está ali. Diante dos nossos olhos, na cidade destruída, nos cadáveres amontoados, nas crianças enlouquecidas de medo e desamparo. Tudo de tal modo que, enquanto os combates prosseguem em Alepo, o mais importante não é o abominável facto militar mas sim a ensinança anti-russa que as sucessivas reportagens implicam. De tal modo que bem se pode dizer que o mais relevante da Operação Alepo é de carácter propagandístico e ideológico. E que é dessa sua natureza que o sangue mais perigosamente escorre.




Mais artigos de: Argumentos

A voz de Dan

Quando o realizador britânico Ken Loach recebeu a Palma de Ouro do Festival de Cannes deste ano por I, Daniel Blake (Eu, Daniel Blake, 2016) já contava com um prémio destes. The Wind That Shakes the Barley (Brisa de Mudança, 2006) tinha ganho o mesmo galardão...

África combatente<br> homenageia Fidel

Em África, nestes dias, partidos políticos e dirigentes estatais prestam tributo a Fidel Castro. Destacam o contributo do líder revolucionário de Cuba para a emancipação nacional e social de África e para a luta anti-imperialista dos povos do Terceiro Mundo....