Da subserviência e da coerência
Na passada semana, o Parlamento Europeu aprovou um muito perigoso relatório de iniciativa, leia-se uma proposta do PE ao Conselho e à Comissão, sobre a criação de um mecanismo europeu para a Democracia, o Estado de Direito e os Direitos Fundamentais. Uma «democracia liberal», assim a chamam.
Enquadremos a resolução. Países como a Hungria e mais recentemente a Polónia (mas não só...), governados por forças reaccionárias, protofascistas, têm, nos últimos anos, promovido uma brutal ofensiva sobre todos os domínios de direitos e liberdades, dos trabalhadores, à liberdade de expressão, à perseguição política, nomeadamente contra os partidos comunistas daqueles países. No último ano, várias foram as iniciativas de ingerência no PE, nomeadamente sobre aqueles dois países defendendo como resposta a activação – inédita – do artigo 7.º do Tratado da União Europeia (TUE)1, invocando violações do Estado de Direito e dos Direitos Humanos, mas omitindo a natureza de classe dos seus regimes políticos, a perseguição aos trabalhadores, aos comunistas e forças progressistas, e a própria responsabilidade da UE no recrudescimento das forças reaccionárias em todo o seu território.
Essa não activação motiva esta resolução, que se centra nos artigos 2.º, 3.º e 7.º do TUE. Os dois primeiros, relativos aos valores em que se «funda» a UE e os objectivos a que se propõe. Dignidade humana, liberdade, democracia, igualdade, direitos do homem, justiça, solidariedade, combate à pobreza, promoção da coesão económica, social e territorial, paz e segurança. Um conjunto de valores que desfalecem nos textos dos tratados, porquanto a prática demonstra que as políticas da UE não só não respondem como os afrontam (Líbia, Ucrânia, Jugoslávia, ou a crise humanitária dos refugiados por exemplo). Mas percebe-se porque a realidade é distante dos tratados, quando no mesmo enunciado se misturam estes valores com a criação de um mercado interno ou do espartilho da União Económica e Monetária e do euro.
O terceiro, que preconiza a possibilidade de o Conselho promover sanções contra um Estado-membro que viole os valores do artigo 2.º, nomeadamente a retirada do direito de voto nas reuniões daquele órgão.
Deste ponto de partida arranca para a proposta que conta com alguns pontos-chave a integrar num acordo inter-institucional:
– a criação de um ciclo político para a democracia e estado de direito, à semelhança do semestre europeu para a governação económica, de avaliação dos cumprimento dos estados-membros com recomendações específicas por país, avançadas por um painel de expertos que constituam um nível judicial superior (supostos peritos independentes);
– tornar o TUE e a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (CDFUE), a base jurídica para medidas legislativas a adoptar, e a revisão do artigo 7.º para «tornar as sanções contra qualquer Estado-membro relevantes e aplicáveis, identificando os direitos [...] que possam ser suspensos, por exemplo, sanções financeiras ou a suspensão do financiamento da União»;2
– suprimir o princípio da subsidiariedade da CDFUE e convertê-la numa declaração de direitos da UE;2
– rever o requisito de unanimidade no Conselho em decisões que envolvam direitos fundamentais.2
Ante mais este cenário, de inaceitável assalto à soberania dos estados, aprofundando os mecanismos de federalização da UE por via de um garrote legislativo, num ciclo para a democracia (a deles), registamos o voto favorável de PS e PSD, subservientes ao projecto de integração capitalista, e a abstenção do CDS e do BE. O voto favorável dado pelo BE aos elementos mais graves da proposta revela uma vez mais o seu alinhamento com as opções e decisões de ingerência e ataque à soberania dos estados. Ao votarem favoravelmente a necessidade e o reforço da aplicação de sanções a países «incumpridores», o que estes partidos fizeram foi legitimar as sanções e as inaceitáveis chantagens e pressões que pendem sobre Portugal.
Acresce que as instituições da UE não são exemplo no que toca à democracia e direitos fundamentais. A harmonização destes constitui, para países como Portugal, uma inaceitável pressão negativa, nivelando por baixo os padrões de direitos sociais e de trabalho. O enredo de tratados e legislação europeus são, em verdade, um obstáculo à legítima decisão soberana de cada povo decidir dos seus destinos, um obstáculo à concretização da constituição portuguesa e das conquistas da revolução que o povo português, mais cedo que tarde, saberá retomar e impor, libertando-se dos constrangimentos dos tratados.
O PCP coerente com a defesa dos interesses dos trabalhadores, do povo e do país, votou contra.
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1 TUE - http://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX%3A12012M%2FTXT
2 Perante um voto isolado, todos os deputados portugueses no PE votaram favoravelmente este conteúdo, com excepção dos deputados do PCP que votaram contra.