Cortar, dizem eles

Correia da Fonseca

Era o «Prós e Contras» com uma pergunta colocada logo de início à generalidade das gentes: «Há justiça na distribuição dos impostos em Portugal?» No arranque do programa logo se verificou que a esmagadora maioria dos que terão respondido à questão entendia que não, que os impostos estão mal distribuídos; ao cabo de hora e meia de conversa, soube-se que a repartição de opiniões ficara praticamente na mesma. Talvez tivesse sido, pois, hora e meia perdida. Mas, pelo menos, das intervenções havidas durante esse tempo resultara esclarecimentos interessantes? Nem por isso. No palco do auditório da Fundação Champalimaud, onde o programa decorria, estavam apenas quatro protagonistas: quatro ex-secretários de Estado das Finanças, isto é, quatro técnicos, muitas vezes a falar no seu peculiar dialecto. Lá para o meio do programa vieram da plateia três ou quatro intervenções, mas na verdade pouco ou nada de muito interessante elas acrescentaram à chateza dominante que, contudo, foi contrariada em alguns momentos. Um deles ocorreu quando foi dito que perto de metade das famílias portuguesas não ganham o suficiente para serem colectados em IRS, o que comprova a dimensão da pobreza a que o povo português foi condenado. Outro desses momentos aconteceu quando se verificou que entre as discordâncias havidas entre os quatro técnicos emergia, ainda que com diferentes intensidades, um consenso que poderia ser expresso por uma espécie de palavra de ordem: «é preciso cortar!» Na despesa do Estado, é claro. Isto é: naquilo que dá sentido e conteúdo a um Estado democrático, justo, solidário, honrado.

Porque há cirurgias fatais

A questão está em que, sendo embora de primordial importância a justa distribuição dos impostos a cobrar pelo Estado, é-o talvez ainda mais a sua adequada aplicação. Quanto ao primeiro ponto, até poderá ser lembrado um estribilho hipócrita há muitas décadas lançado por Salazar, «os que podem aos que precisam», e essa fórmula sintética e de insuspeita origem chegará para responder aos que, alarmados e condoídos, afirmam que andam por aí uns selvagens que querem acabar com os ricos, coitados. Quanto ao segundo ponto, é preciso descascar a palavra «aplicação» e ver o que tem dentro. Verificar-se-á então que tem os serviços de Saúde a que todos podemos recorrer quando a doença nos colhe e a morte ronda, que tem os serviços de Ensino (designados «de Educação» por desvio semântico) que fará dos nossos filhos cidadãos úteis e em princípio autossuficientes na sociedade em que irão integrar-se, que tem a Justiça necessária para impedir ou reprimir as violências de vária ordem que a vida quotidiana tende a segregar; que tem tudo isso e muito mais do que nos é necessário ao longo dos dias. Tentando uma fórmula sintética e abrangente, diremos que tem o que é necessário para que um cidadão comum e sempre vulnerável a riscos vários possa viver com um mínimo de tranquilidade. E uma coisa parece surgir como certa neste capítulo da aplicação dos impostos, isto é da despesa pública sempre crivada de apelos para que seja cortada: seria criminoso devolver a maioria do povo, total ou parcialmente, à doença sem tratamento, à ignorância e ao analfabetismo sem horizontes, à impunidade total e garantida das mais variadas malfeitorias. Em verdade, um Estado verdadeiramente civilizado é o que se interpõe entre o cidadão e as múltiplas carências que o assaltariam se fosse entregue desprotegido à «struggle for life», expressão que nas selvas corresponde à hegemonia dos mais fortes e ferozes, que nas cidades supostamente civilizadas significa o domínio dos sumariamente designáveis por «ricos» ainda que haja quem nunca tenha conseguido saber o que é um deles. De onde a necessidade de lidar com supremos cuidados com a proposta de «cortes» que tanto é repetida. Porque há cirurgias fatais para uma verdadeiramente civilizada existência colectiva.




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