O barão atraiçoado

Correia da Fonseca

Foram os Jogos Olím­picos, os cha­mados Jogos Olím­picos da Era Mo­derna, rein­ven­tados nos fi­nais do sé­culo XIX por um homem nas­cido em Paris, lugar que so­bre­tudo na­quele tempo era bom sítio para nascer desde que o berço fosse em­ba­lado por in­te­res­santes meios de for­tuna, como era o caso. Cha­mava-se Pi­erre, era his­to­ri­ador e um su­jeito muito in­te­res­sado na pro­moção da cul­tura fí­sica e do des­porto, o que por aqueles anos não era muito comum, e também por um en­ten­di­mento de con­vívio trans­na­ci­onal que na­quele tempo seria um factor re­la­ti­va­mente novo. Era, aliás, uma al­tura em que a Eu­ropa era per­cor­rida por um grande can­saço pe­rante as guerras: hou­vera as cam­pa­nhas na­po­leó­nicas, cujos ecos e efeitos ainda não se ha­viam dis­si­pado, e mais pro­xi­ma­mente a guerra franco-prus­siana de 70-71, de que a França saíra mal, como é sa­bido. De onde um de­sejo de paz e do que talvez pu­desse de­signar-se por fra­ter­ni­dade uni­versal. Neste quadro, os Jogos Olím­picos pla­ne­ados por Pi­erre, ador­nado pelo tí­tulo no­bi­liár­quico de barão de Cou­bertin que talvez lhe re­for­çasse a ca­pa­ci­dade de in­ter­venção, se­riam uma festa do des­porto onde a com­pe­tição sempre de­cor­reria entre in­di­ví­duos pro­ve­ni­entes de di­fe­rentes lu­gares da Eu­ropa e do mundo, nunca um con­fronto entre o poder des­por­tivo de di­versos países, isto é, nunca um acon­te­ci­mento que ainda que por via in­di­recta pu­desse es­ti­mular na­ci­o­na­lismos in­de­se­já­veis e então in­de­se­jados. Nada disto é no­vi­dade, po­demos mesmo dizer que toda a gente sabe isto, mas também po­demos dizer que quase toda a gente o es­quece. Sendo aliás muito aju­dada nisso por quem mais devia lembrá-lo.

No lugar er­rado

Ve­jamos agora qual a imagem dos Jogos Olím­picos Mo­dernos, so­bre­tudo a imagem que nos é tra­zida pelos di­fe­rentes meios da cha­mada Co­mu­ni­cação So­cial, essa des­ve­lada mãe de todos os nossos en­ganos. Pega-se num jornal, ouve-se a rádio, en­cara-se o te­le­visor, e a tó­nica do que nos vai sendo in­for­mado não é tanto a iden­ti­fi­cação in­di­vi­dual dos ven­ce­dores das di­fe­rentes provas quanto a sua na­ci­o­na­li­dade. Com ex­cepção dos atletas na­ci­o­nais, na­tu­ral­mente. Mas a subs­ti­tuição do con­fronto entre des­por­tistas pelo con­fronto entre na­ções atinge formas de que se diria serem já ins­ti­tu­ci­o­nais, como é o caso do cha­mado «me­da­lheiro», quadro que fixa a or­de­nação dos di­fe­rentes países pelo nú­mero dos seus êxitos. Trata-se cla­ra­mente de trans­formar os Jogos Olím­picos num lugar de com­pe­tição entre países, isto é, de trair des­ca­ra­da­mente as in­ten­ções e o pro­jecto de Pi­erre de Cou­bertin. E essa es­pécie de guerra surda chega ao ponto de ser ini­ciada antes do início dos Jogos: terá sido (ou assim pa­receu) o caso das me­didas de jus­ti­fi­cação nunca lim­pi­da­mente es­cla­re­cidas, e apa­ren­te­mente rec­ti­fi­cadas em parte, pre­vi­a­mente to­madas contra a re­pre­sen­tação russa. Ainda assim, note-se que a Rússia ficou, no tal «me­da­lheiro», em quarto lugar, à frente da Ale­manha, do Japão e da França, e ima­gine-se como seria se lhe jun­tás­semos as me­da­lhas ob­tidas pelas re­pú­blicas in­te­gradas na an­tiga URSS antes do seu des­mem­bra­mento. Re­co­nhe­çamos, porém, que até aqui, neste texto su­mário e tosco, se faz sentir a in­fluência da traição co­me­tida contra Cou­bertin; até aqui nos dei­xámos ar­rastar para a con­ta­bi­li­zação, de facto ile­gí­tima à luz do pro­jecto do barão, das di­versas «vi­tó­rias na­ci­o­nais». Talvez porque es­tamos todos um pouco con­ta­mi­nados pelo vírus do pa­tri­o­tismo apli­cado no lugar er­rado. De­certo porque houve forças po­de­rosas que qui­seram e con­se­guiram con­ta­minar-nos.




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