A batalha esquecida

Correia da Fonseca

Talvez por desatenção, provavelmente não, o caso é que a generalidade dos telespectadores não deu conta de que a televisão portuguesa em geral, e particularmente a estação pública de TV, aludisse no passado domingo, 14, com adequados vagar e atenção, à batalha de Aljubarrota cujo 631.º aniversário decorria naquele exacto dia. Foi um pouco surpreendente: tempos houve em que Aljubarrota era celebrada nos media e sobretudo nas escolas quase que ao som das trombetas evocadas por Camões nos sonoros e admiráveis versos dedicados à batalha: «deu sinal a trombeta castelhana / Horrendo, fero, ingente e temeroso;/ Ouviu-o Monte Astarbo e o Guadiana / Atrás voltou as águas de medroso.» É claro que os tempos mudam e que as designações perdem impacto: por exemplo, parece que o Monte Astarbo, impressionante no verbo do poeta, é apenas o nosso familiar Cabo da Roca, ponto turístico distribuidor de diplomas aos visitantes estrangeiros. Mas talvez mudem também num outro plano, o das relações internacionais em geral e em especial do nosso País com a Espanha que, por sinal, anda a ter com a Europa concentrada em Bruxelas alguns problemas parecidos com os que Portugal defronta, ainda que não tão intensos porque o governo espanhol (se é que existe) não é apoiado pela esquerda local. Neste quadro, talvez seja prudente e de bom tom não festejar muito ruidosamente a derrota que em minoria numérica infligimos aos castelhanos. Mas há mais: é que ao lado dos invasores combateram em Aljubarrota numerosos fidalgos portugueses, entre os quais alguns irmãos do comandante português, o condestável Nuno Álvares Pereira. O próprio Luís de Camões regista o facto em palavras generalizantes e em que até podemos encontrar hoje um sabor profético: «(…) dos portugueses / Traidores houve também algumas vezes». Mais um possível motivo, ainda que remoto e na verdade improvável, para que a TV não se empenhasse muito na recordação de um evento participado por portugueses ao objectivo serviço de estrangeiros.

Um facto novo

De qualquer modo, com menção alargada ou não na informação e na programação geral das operadoras de televisão, pois suprimir é por vezes um modo involuntário de lembrar, Aljubarrota foi, como aliás bem se sabe, lugar de diversas lições. Uma delas já aqui está referida, a da presença de traidores de elevado grau social em apoio de interesses estrangeiros, o que sem dúvida nos lembra qualquer coisa. Uma outra lição, e essa tendencialmente revolucionária, foi o da presença vitoriosa da peonagem sobre a cavalaria castelhana, isto é, da chamada arraia-miúda, do povo armado, sobre a nobreza arrogante e emplumada. É certo que a tal peonagem estava organizada e comandada por quem intuiu a sua força, mas isso só indica que não basta ser povo e que a organização é indispensável. É claro que reflexões desta ordem estariam sempre, de qualquer modo, fora do que a televisão portuguesa poderia ter lembrado aos seus telespectadores no passado domingo, e o motivo ou motivos do total ou parcial esquecimento de Aljubarrota terão sido outros mais singelos e muito diferentes: os Jogos Olímpicos no Rio, os incêndios a devastarem o País e a serem utilizados para a convocação de audiências, o regresso do querido futebol e do intenso comentarismo futeboleiro, coisas assim. Mas Aljubarrota aconteceu, sim. Mas a peonagem venceu a cavalaria, sim. E ao vencer terá introduzido um facto novo na História de Portugal.




Mais artigos de: Argumentos

Os incêndios florestais<br>– por trás das chamas…

À frente do fogo, a enfrentar o perigo encontramos os homens e as mulheres das zonas afectadas e, claro, os Bombeiros e outros operacionais. E por trás das chamas, que poderemos nós encontrar, se o «fumo» da propaganda oficial e oficiosa e a...

<i>Viva la vida!</i>

Não é possível saber se foi ao som do tão famoso quão tenebroso grito de Viva la Muerte! que os fascistas assassinaram, faz hoje 70 anos, Federico Garcia Lorca, um dos mais notáveis poetas e dramaturgos espanhóis e um empenhado combatente pela...