Elas
Desta vez, a primeira desde que a série começou a ser transmitida, não foi preciso esperar pela fronteira horária da meia-noite para vermos o episódio de «Estórias do Tempo da Outra Senhora», a série que sob um título aparentemente cauteloso vem contar-nos factos e situações fundamentais da vida, da História, do nosso País antes de Abril de 74: o episódio estava anunciado para as 23 horas e 30, entrou no ar cerca de um quarto de hora depois. Duraria perto de uma hora e, assim, talvez alguns cidadãos tenham resistido à óbvia necessidade do repouso nocturno para conhecerem mais algum fragmento da verdade histórica que há muito devia ter sido amplamente divulgada e que sempre tem sido avaramente escondida pela TV e não só: a vida sob o fascismo e a resistência que sempre foi oposta à ditadura. Entretanto, continua a ser transmitida nos serões dos dias úteis, por volta das 22 horas, a série aliás excelente ou quase excelente «Uma Aldeia Francesa», pelo que os telespectadores portugueses correm o risco de ficarem a saber mais acerca da resistência francesa à ocupação nazi do que acerca da resistência portuguesa ao fascismo local. Contudo, não se estranhe: tal como a história de Deus segundo Mestre Gil, os critérios horários da RTP têm «tais profundezas» que já não nos devemos surpreender. Ou talvez antes entendê-los como desígnios.
Fragmento a fragmento
Desta vez a «estória» que a série revelou foi-nos contada por duas mulheres que a protagonizaram, Margarida Tengarrinha e Teodósia Gregório: foi a «estória» de uma das tarefas que lhes foram confiadas, a feitura de uma publicação clandestina, «A Voz das Camaradas das Casas Clandestinas», dos riscos e dificuldades enfrentados, também das limitações que couberam aos filhos que com elas viviam a clandestinidade. Margarida Tengarrinha teve o cuidado de explicar, talvez a propósito das quotidianas limitações impostas às crianças, que a vida na clandestinidade, com todas as consequências dela decorrentes, não era uma opção voluntariamente assumida, era uma consequência imposta pela repressão fascista. Como consequência foram os momentos de terrível dramaticidade vividos por Margarida quando por um camarada lhe foi anunciado que o seu companheiro, o pintor e escultor José Dias Coelho, havia sido assassinado a tiro por agentes da PIDE numa rua de Lisboa. As palavras com que Margarida Tengarrinha nos descreveu esses minutos vividos em devastada amargura, sozinha, sentada algures em Belém fitando o Tejo, testemunharam perante os telespectadores atentos uma parte do altíssimo preço com que as mulheres e os homens que resistiram pagaram a sua coragem. Outros momentos de menor intensidade nos foram contados ao longo do programa: as súbitas mudanças de alojamento impostas por eventuais riscos surgidos inesperadamente, os trabalhos sempre difíceis da produção de «A Voz das Camaradas», o óbvio isolamento em relação ao meio envolvente, tudo isso e muito mais apoiado num sentimento superlativo de dever cívico, de uma invulgar fraternidade cidadã, da convicção de que a opressão não pode ser eterna e, para usar aqui a fórmula que Baptista-Bastos repetia, «a esperança tem sempre razão». Assim foi confiado aos telespectadores atentos e persistentes mais um fragmento da realidade verdadeiramente heróica que durante o fascismo foi vivida por gente que com uma enorme obstinação, dia após dia, foi dizendo «não» ao conformismo e à cobardia; mais um fragmento de uma realidade que a televisão pública sempre tem sido avara em divulgar. E que está agora a ser parcialmente acessível em depoimentos dispersos transmitidos a desoras sob um título como que sabiamente escolhido para não dar muito nas vistas.