A anestesia

Correia da Fonseca

Era em Portugal o dia em que no Jamor se disputaria a final da Taça de Portugal. Ao fim da tarde haveria de saber-se que o vencedor seria o Sporting de Braga, sabidamente o clube da simpatia do professor Marcelo Rebelo de Sousa, assim se confirmando que os deuses continuam apostados em proporcionar ao senhor Presidente motivos de satisfação que pelos vistos não se limitam à área dos factos políticos. Era, pois, o dia da Taça. Por cá. Noutros lugares, porém, era o dia de outros acontecimentos, e na Áustria era dia de eleições, delas podendo resultar, ao que constava, que a chefia do Estado fosse conseguida pelo líder da extrema-direita, o que não acontecia desde distantes anos do século passado. Não se dirá que a eventualidade, a confirmar-se, era coisa de muito espantar: a Áustria tem a triste tradição histórica de ser um país onde a extrema-direita é forte, lembremos de passagem que Hitler nasceu na Áustria e que as tropas nazis foram muito aplaudidas por vienenses quando em 1938 entraram na capital austríaca. Aliás, os tais «distantes anos» a que se aludiu agora não são tão distantes quanto isso: entre 1986 e 1992, a Áustria foi presidida por Kurt Waldeim, um sujeito que conseguira chegar a secretário-geral da ONU graças às complacências e voluntárias miopias do costume e cuja actuação durante a Segunda Guerra Mundial, comandando tropas nazis, tresandava a matanças de judeus e de ciganos. De qualquer modo, sendo ou não sendo uma estreia absoluta, a possível subida à presidência austríaca de um líder da extrema-direita não seria apenas uma notícia má: era mais um sintoma da gangrena que tende a alastrar pela Europa. Quanto a notícias do dia, isso da eventual «nazificação» da presidência austríaca não parecia ser interessante para os media portugueses e, mais concretamente, para a televisão. Por cá era a Taça, ponto final. Ou melhor: era a Taça, muitos pontos de entusiástica exclamação.

Tempo de Futebologia

Havia sido assim desde manhãzinha: não será grande exagero dizer que no passado domingo os portugueses acordaram ao som de notícias acerca da Grande Final se ouviam rádio ao despertar ou se ligavam o televisor durante o trânsito para o duche. Mais tarde, na rua, eram os cabeçalhos dos jornais e não só os da imprensa desportiva. Dir-se-á que não há grande escândalo nisso, que a final da Taça ocorre só uma vez em cada ano (sabe-se que há outras taças, mas passemos sobre isso…) e que um dia não são dias, como por vezes diz o povo. Há, é certo, a questão da eleição austríaca, mas não vamos exigir agora que os portugueses estejam atentos a eleições que se realizam num país que nem sequer é uma grande potência do futebol. Ainda assim, porém, é de ponderar se desta vez a dose não foi excessiva: de manhã à noite, ou melhor, de manhã até horas adentro da madrugada seguinte, a Taça foi a ementa praticamente exclusiva dos grandes canais ditos informativos (SIC Notícias, RTP3, TVI24) e dominante nos telenoticiários dos canais abertos. E o que mais importa não é denunciar esse excesso em contraste com a indiferença perante a provável eleição de um paranazi para a presidência de um estado da Europa central já com um currículo histórico embaraçoso, mais o sintoma que esse facto constitui: o que mais importa é assinalar e sublinhar uma situação concreta de manipulação de milhões de cabecinhas imposta pelo superlativo relevo dado pela TV ao futebol em geral e a um jogo em especial. Não se trata de contestar o interesse por um desporto, se desporto continua a ser, ou por um espectáculo, se é sobretudo em espectáculo que se tornou: trata-se de recusarmos a anestesia. Está a televisão portuguesa impregnada de Futebologia, essa espécie de nova ciência que fez surgir peculiares doutores, o que é o menos, e infetadíssimos doentes. Com os cérebros infiltrados não por vírus, mas por imagens de bolas a rolarem para dentro do que, segundo uma patusca imagem neste domingo ouvida na TV, são grandes gaiolas «que parecem galinheiros».

 



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