A propósito dos Papéis
do Panamá e o capitalismo

Tira o capitalismo da chuva…

Agostinho Lopes

Tira o ca­pi­ta­lismo da chuva… senão molha-se! Isto é, tira o ca­pi­ta­lismo da chuva… de Pa­péis do Pa­namá. Uma ver­da­deira sin­fonia con­cer­tante de­dicou-se a ga­rantir que o ca­pi­ta­lismo não tem nada a ver com o es­cân­dalo (mais um) posto a nu pelos cha­mados Pa­péis do Pa­namá. Ou seja, os pa­raísos fis­cais, as so­ci­e­dades offshore, são uma ex­cres­cência fi­nan­ceira de uns quantos la­drões e outra gente de má fama (ex­cepto, se­gundo pa­rece, dos EUA) – ban­queiros, po­lí­ticos, es­cri­tó­rios de ad­vo­gados, ad­mi­nis­tra­dores de grupos eco­nó­micos, – e não o ca­pi­ta­lismo em acção.

Não é de hoje, o ca­pi­ta­lismo sempre buscou a opa­ci­dade, a falta de trans­pa­rência, in­ven­tando a so­ci­e­dade anó­nima SARL e o si­gilo ban­cário. Os offshores /pa­raísos fis­cais são apenas a úl­tima cri­ação.

Deu o pon­tapé de saída o ine­fável Fran­cisco Assis (FA), no texto «A culpa é sempre dos ca­pi­ta­listas» (Pú­blico, 7 de Abril de 2016): «Para a ex­trema-es­querda cons­titui a úl­tima de­mons­tração da fa­lência moral da eco­nomia de mer­cado». E afir­ma­tivo, «Não é ver­dade, apesar de todas as di­fi­cul­dades, que a UE es­teja pa­ra­li­sada no com­bate aos cha­mados “pa­raísos fis­cais”», apre­senta a prova dos nove, «Não será por acaso que até à data – com a ex­cepção ime­di­a­ta­mente re­sol­vida da Is­lândia – não de­tec­támos a pre­sença de qual­quer di­ri­gente po­lí­tico do es­paço de­mo­crá­tico oci­dental na lista dos even­tuais pre­va­ri­ca­dores. Está lá Putin, estão lá di­ri­gentes chi­neses, estão lá au­to­cratas de todo o es­tilo e na­tu­reza, não estão lí­deres eu­ro­peus. E não estão por uma razão sim­ples: pela qua­li­dade das ins­ti­tui­ções que es­tru­turam os re­gimes de­mo­crá­ticos-li­be­rais.»

Seria caso para dizer cedo e mal pi­aste, se não se tra­tasse de uma re­flexão pró­pria de es­pí­ritos «muito re­tor­cidos ou pouco abo­nados». Po­deria ter-se lem­brado de Ca­meron. De Ber­lus­coni. E so­bre­tudo de Jean-Claude Juncker, que com ou­tros so­ciais-de­mo­cratas elegeu para pre­si­dente da Co­missão Eu­ro­peia, que foi capaz de ir muito além da sim­ples uti­li­zação de um pa­raíso fiscal! Criou um pa­raíso fiscal quando era pri­meiro-mi­nistro do Lu­xem­burgo, como ficou pa­tente no Lux­leaks de 2014!

De­so­nes­ti­dade: FA sabe que estão lo­ca­li­zados na União Eu­ro­peia, e no «es­paço de­mo­crá­tico oci­dental», al­guns dos prin­ci­pais pa­raísos fis­cais, cri­ação dos seus «re­gimes de­mo­crá­tico-li­be­rais». Sabe que são «oci­den­tais» al­gumas das prin­ci­pais en­ti­dades in­ter­me­diá­rias e uti­li­za­doras dos «pa­raísos» e «so­ci­e­dades offshore».

FA foi ra­pi­da­mente se­cun­dado, e até ci­tado por ou­tras ex­celsas fi­guras. Caso de Hen­rique Mon­teiro (HM) (Ex­presso, 9 de Abril de 2016), que acres­centa mais uma des­co­berta, «não há de­mo­cracia sem ca­pi­ta­lismo, sem li­ber­dade de mer­cado».

In­te­res­sante também a opi­nião de A. No­gueira Leite (Diário de No­tí­cias, 5 de Abril de 2016), «A opa­ci­dade fi­nan­ceira é ini­miga do ca­pi­ta­lismo», assim pro­cu­rando virar o bico ao prego, e es­ta­be­le­cendo a ar­ti­fi­ciosa dis­tinção entre «pro­cessos de op­ti­mi­zação fiscal» e «actos de cor­rupção e res­pec­tivos en­co­bri­mentos, fraude fiscal (…)». Dis­tinção, aliás, cor­ro­bo­rada por As­sunção Cristas: «se­parar entre o que é com­pe­ti­ti­vi­dade fiscal e (…) o uso de es­quemas para es­conder ac­ti­vi­dades ilí­citas».

Também Luís Mar­ques em «Ga­nância Global» (Ex­presso, 9 de Abril de 2016), dá um ar da sua graça: «A crí­tica à ga­nância global não pode ser um ins­tru­mento de­ma­gó­gico de ataque à eco­nomia global, ou seja, ao ca­pi­ta­lismo dos nossos dias.»

A «amál­gama» ex­trema-di­reita / ex­trema-es­querda
de Assis e Mon­teiro

FA e HM pro­cedem também a uma in­qua­li­fi­cável, men­ti­rosa, in­sul­tuosa e velha «amál­gama» in­te­lec­tual e po­lí­tica, entre a «ex­trema-di­reita» e o que de­no­minam «ex­trema-es­querda». Para FA, «Uns dizem que a culpa é da glo­ba­li­zação, ou­tros afirmam que a res­pon­sa­bi­li­dade é do ca­pi­ta­lismo uni­versal».

Para HM: «Vem a ex­trema-di­reita e diz que é a glo­ba­li­zação e o ca­pi­ta­lismo; vem a ex­trema-es­querda e afirma que é o ca­pi­ta­lismo e a glo­ba­li­zação».

E os dois ca­valgam, in­vo­cando a ex­trema-di­reita Ac­tion Fran­çaise(1) e Maurras, ar­mados de um an­ti­co­mu­nismo ca­ver­ní­cola, a velha «mis­ti­fi­cação» de que a ex­trema-di­reita é an­ti­ca­pi­ta­lista, contra o ca­pi­ta­lismo. Os re­gimes de Sa­lazar e Franco, para fi­carmos por casa e vi­zi­nhança eram o quê? Re­gimes «cor­po­ra­tivos», «so­ci­a­listas»? Ma­rine Le Pen de­fende o quê? A so­ci­a­li­zação dos meios de pro­dução?

Os Pa­péis do Pa­namá, a lei e a ética

Ar­ti­cu­lado com os que julgam que o es­cân­dalo dos Pa­péis do Pa­namá nada tem a ver com as es­tru­turas e di­nâ­micas do ca­pi­ta­lismo fi­nan­ceiro, surge um sig­ni­fi­ca­tivo nú­mero de jor­na­listas e co­men­ta­dores que de facto o «sal­va­guardam», por via de co­nhe­cidos bodes ex­pi­a­tó­rios. É a le­gis­lação que é er­rada ou in­su­fi­ci­ente e/​ou os «re­gu­la­dores» que são im­po­tentes e/​ou in­ca­pazes, e nesta tó­nica estão os que re­duzem o pro­blema a quase só uma questão fiscal; outra fo­cagem é na «na­tu­reza hu­mana», na «crise de va­lores», nos com­por­ta­mentos não éticos de agentes eco­nó­micos. Ha­vendo para todas as cores e pa­la­dares, o grande de­bate pa­rece ser entre os que re­sumem a coisa ao cum­pri­mento da lei, e os que pensam que, mais do que as normas le­gais, estão em causa os pro­ce­di­mentos mo­rais e éticos. Há ainda os que en­tre­laçam a lei e a ética, mas todos ficam longe de uma qual­quer res­pon­sa­bi­li­zação do ca­pi­ta­lismo. Di­luem a sua res­pon­sa­bi­li­dade na «na­tu­reza hu­mana» e na falta, ou não apli­cação, da lei. Como diz Luís Mar­ques (Ex­presso, 9 de Março), «Não há ide­o­lo­gias nem sis­temas po­lí­ticos imunes aos de­feitos hu­manos. Para isso há a lei e o Es­tado para a aplicar. Mas quem aplica a lei neste mundo global? As leis lo­cais não têm valor global.»

A li­mi­tação do texto não per­mite uma exaus­tiva e elu­ci­da­tiva ex­tensão de ci­ta­ções. Dois casos pa­ra­dig­má­ticos.

Pedro Santos Guer­reiro (Ex­presso, 9 de Abril de 2016):

«(..) As ins­ti­tui­ções po­lí­ticas têm obri­gação de le­gislar me­lhor mas também de dotar os meios de in­ves­ti­gação e de po­li­ci­a­mento de meios mais po­de­rosos para en­jaular a besta.»

Mi­guel Sousa Ta­vares: «Os inim­pu­tá­veis» (Ex­presso, 9 de Abril de 2016)

«(...) o que os «Pa­nama pa­pers» nos contam é uma his­tória que já co­nhe­cíamos desde 2008, quando o es­toiro do Lehman Brothers ar­rastou o mundo para uma crise de uma cru­el­dade so­cial inau­dita: o que mata o ca­pi­ta­lismo mun­dial não são erros eco­nó­micos nem po­lí­ticos: é a ga­nância, a falta de es­crú­pulos e de va­lores éticos. Que nin­guém quer vi­giar a sério.»

Mas há ou­tras opi­niões…

A opi­nião de Carlos Pi­menta (Visão on­line, 7 de Abril de 2016): «Com os es­quemas de si­gilo (Mos­sack Fon­seca) au­to­ma­ti­ca­mente en­co­briu e pro­moveu muitos actos ile­gais, pro­va­vel­mente vá­rios bár­baros, mas na ver­dade ele não co­meteu nem ajudou a co­meter ile­ga­li­dades. E aí está o cerne do pro­blema: os pa­raísos fis­cais, a fa­ci­li­dade de cri­ação de em­presas fic­tí­cias e o en­co­bri­mento dos seus pro­pri­e­tá­rios, logo o si­gilo dos actos aí pra­ti­cados, é uma mega es­tru­tura mun­dial per­fei­ta­mente legal. A lei dos po­de­rosos do mundo (ou não fossem os mai­ores países ca­pi­ta­listas os seus pro­pri­e­tá­rios) en­cobre a sua pró­pria le­ga­li­dade. A lei existe para pro­teger a pro­pri­e­dade dos donos da ri­queza. Por isso, a ri­queza pri­vada nos pa­raísos fis­cais é pelo menos me­tade do pro­duto mun­dial anual.»

Es­cla­rece Sandro Men­donça (Ex­presso, 9 de Abril de 2016): «Mas os pa­raísos fis­cais não são um fe­nó­meno na margem do sis­tema. Não são meras ex­ce­ções: são ful­cros que as­se­guram re­gras cada vez mais aper­tadas im­postas a tudo o resto. São um as­pecto es­tru­tural do mains­tream. Estão no co­ração desta nova fase de glo­ba­li­zação fi­nan­cei­ri­zada que vem desde os anos 70.». Po­demos con­cluir com Rui Sá: «É o ca­pi­ta­lismo, es­tú­pido», (Jornal de No­tí­cias, 11 de Abril de 2016).

Se isto não é ca­pi­ta­lismo…

A Oxfam re­lata que entre 2001 e 2014 as 50 mai­ores mul­ti­na­ci­o­nais dos EUA, no­me­a­da­mente fi­nan­ceiras, como a Goldman Sachs, o Bank of Ame­rica, o City­group, o JP Morgan Chase, e ou­tras como a Apple, a IBM, a Che­vron, a Ford, a Boing, a Exxon Mobil, a Coca-Cola, a Intel, cri­aram mais de 1600 so­ci­e­dades offshores em pa­raísos fis­cais, onde apli­caram 1,4 bi­liões (mi­lhões de mi­lhões) de dó­lares.

Dos Pa­péis do Pa­namá fi­camos também a saber (para já) que 511 bancos, onde se in­cluem al­guns dos mai­ores bancos eu­ro­peus, HSBC (o maior da Eu­ropa), o UBS, etc., cri­aram mi­lhares de so­ci­e­dades offshores.

Se­gundo Ga­briel Zucman (Uni­ver­si­dade da Ca­li­fórnia) oito por cento da ri­queza fi­nan­ceira mun­dial, cerca de 7,6 bi­liões de dó­lares es­taria em pa­raísos fis­cais. Mas ou­tros ba­lanços falam de va­lores até 30 bi­liões de dó­lares… Se­gundo o FMI, já em me­ados dos anos 90 pelos pa­raísos fis­cais pas­sava me­tade dos fluxos fi­nan­ceiros in­ter­na­ci­o­nais.

O es­cân­dalo do Pa­namá é uma gota no oceano dos mais de 80 pa­raísos fis­cais, que estão bem dis­tri­buídos pelo pla­neta.

A sua lo­ca­li­zação é só por si elu­ci­da­tiva sobre a «iden­ti­dade» dos co­mandos po­lí­ticos e eco­nó­micos dessas infra-es­tru­turas fi­nan­ceiras.

Numa enu­me­ração curta: o maior offshore do mundo é «a City de Lon­dres, uma milha qua­drada de ju­ris­dição es­pe­cial, no co­ração de uma ca­pital eu­ro­peia» (Pú­blico, 5 de Abril de 2016)! Junta-se, na Eu­ropa, à Suíça, ao Lu­xem­burgo, à Ho­landa, à Ir­landa, à Bél­gica e a Chipre. E fora da Eu­ropa, a Is­rael (porque será que nin­guém ouve falar deste pa­raíso?), e aos es­tados norte-ame­ri­canos de De­laware, Ne­vada, Da­kota do Sul e Wyo­ming – se­gundo a Blo­om­berg, os pa­raísos fis­cais hoje fa­vo­ritos no mundo estão nos EUA.

Das 15 ju­ris­di­ções, quase todas «oci­den­tais», com va­lores mais ele­vados do Índice de Se­gredo Ban­cário (2015), as três pri­meiras são a Suíça, Sin­ga­pura e EUA.

Também as em­presas de con­sul­toria – Er­nest Young, Del­loite, KPMG, ou Baker & Mc­Kenzie (onde tra­ba­lhou du­rante anos Ch­ris­tine La­garde, hoje no FMI) – são bem co­nhe­cidas no ne­gócio offshore. São res­pon­sá­veis pela mon­tagem, trans­fe­rência e en­ge­nha­rias fi­nan­ceiras que ga­rantem aos bancos e mul­ti­na­ci­o­nais a «le­ga­li­dade» do pla­ne­a­mento e op­ti­mi­zação fiscal, e de ou­tras ope­ra­ções (preços de trans­fe­rência). São também e si­mul­ta­ne­a­mente as en­ti­dades que fazem as au­di­to­rias in­ternas e ex­ternas (para o Es­tado, Tri­bu­nais, Re­gu­la­dores) às suas contas.

É claro que o fun­ci­o­na­mento destas infra-es­tru­turas, em­presas, me­ca­nismos, ins­tru­mentos e pro­dutos fi­nan­ceiros – o sis­tema global que cons­titui a «me­ga­es­tru­tura mun­dial per­fei­ta­mente legal» – só é pos­sível pela exis­tência da livre cir­cu­lação de ca­pi­tais e de re­gras/​le­gis­lação, como a que en­quadra a cri­ação das so­ci­e­dades offshore.

Quem as en­quadra, cria, au­to­riza e le­gi­tima são as prin­ci­pais po­tên­cias ca­pi­ta­listas mun­diais, EUA, Reino Unido, Ale­manha, França, es­tru­turas re­gi­o­nais como a UE. Idem para os pro­cessos de li­be­ra­li­zação dos mo­vi­mentos de ca­pi­tais e de des­re­gu­la­men­tação dos mer­cados fi­nan­ceiros in­ter­na­ci­o­nais que se ini­ci­aram na dé­cada de oi­tenta. Pro­cessos ar­ti­cu­lados com a li­be­ra­li­zação de ou­tros mer­cados, a co­meçar pelo da força de tra­balho, a pri­va­ti­zação das grandes em­presas pú­blicas, e a des­re­gu­la­men­tação de todas as re­la­ções eco­nó­micas e so­ciais. Pro­grama as­su­mido e con­cre­ti­zado pelo FMI, BM, UE, no­me­a­da­mente na Agenda de Lisboa e Agenda 2020, BCE, FED, OCDE, etc., ao ser­viço do ca­pital e dos seus oli­garcas fi­nan­ceiros.

Me­ca­nismos e di­nâ­micas para ga­rantir a ma­xi­mi­zação da apro­pri­ação da mais valia criada no mundo e da re­dis­tri­buição dos ga­nhos do ne­gócio fi­nan­ceiro/​es­pe­cu­la­tivo, ao ser­viço da acu­mu­lação, con­cen­tração e cen­tra­li­zação ca­pi­ta­lista e mo­no­po­lista.

Em grande me­dida cor­res­ponde à ins­ti­tu­ci­o­na­li­zação «formal» da cha­mada Banca Sombra, o con­junto de ope­ra­ções e fluxos fi­nan­ceiros feitos à margem de qual­quer con­trolo, re­gu­lação ou tu­tela de po­deres po­lí­ticos. Um le­van­ta­mento em 2011 do FSB (Fi­nan­cial Sta­bi­lity Board, criado pelo G20 em Abril de 2009) con­cluía que as mai­ores eco­no­mias do mundo te­riam um sector sombra que atin­giria os 60 bi­liões de dó­lares (87% do PIB mun­dial nesse ano).

Sim, os Pa­péis do Pa­namá
são ca­pi­ta­lismo

O ca­pi­ta­lismo dos nossos dias, numa fase ex­trema, para não dizer, «pa­ro­xís­tica», de fi­nan­cei­ri­zação, na sua fase su­prema, o im­pe­ri­a­lismo. Fase com as suas super-es­tru­turas ju­rí­dicas e po­lí­ticas, com as suas po­tên­cias im­pe­ri­a­listas e do­mi­nantes, e as suas pe­ri­fe­rias e se­mi­pe­ri­fe­rias, do­mi­nadas e/​ou mesmo co­lo­ni­zadas, num mundo uni­polar, de­se­qui­li­brado e des­com­pen­sado pelo de­sa­pa­re­ci­mento da URSS e ou­tros países so­ci­a­listas.

Mas ca­pi­ta­lismo, na sua na­tu­reza e es­sência ex­plo­ra­dora do tra­balho, de ex­tracção e apro­pri­ação da mais-valia, no seu de­sen­vol­vi­mento anár­quico mul­ti­pli­cador de de­si­gual­dades so­ciais e re­gi­o­nais, em con­flito com a na­tu­reza e os equi­lí­brios dos ecos­sis­temas, no­me­a­da­mente na apro­pri­ação/«​lavra ga­nan­ciosa» dos re­cursos na­tu­rais do pla­neta. Fo­men­tador de caos e guerras. E em crise sis­té­mica!

A «fi­nan­cei­ri­zação» da eco­nomia ca­pi­ta­lista não é um fe­nó­meno anó­malo ao ca­pi­ta­lismo, mas o de­sen­vol­vi­mento «na­tural» e «ló­gico» do sis­tema. A apro­pri­ação de mais-valia sem a pro­duzir, pela ala­van­cagem fi­nan­ceira e glo­ba­li­zação trans­na­ci­onal, onde o re­curso aos pa­raísos fis­cais é uma peça chave!

Sim, o ca­pi­ta­lismo com o seu cri­tério único – a ma­xi­mi­zação do lucro, da ga­nância (ga­nância igual a lucro, em cas­te­lhano). Sim, os offshores, são um pro­blema fiscal, ético, de de­mo­cracia, pro­blemas do sis­tema ca­pi­ta­lista onde se in­serem. Mas os offshores/pa­raísos fis­cais não são uma «pu­tre­facção», uma «gan­grena», um «ex­cre­mento» que se possa ex­tirpar, re­mover, sa­near, para deixar o ca­pi­ta­lismo «legal», ético, puro, limpo.

E não há uns offshores/pa­raísos fis­cais «bons» – os que fa­ci­litam a op­ti­mi­zação fiscal e fazem acordos de troca de in­for­ma­ções – e uns «maus», onde se faz a la­vagem do di­nheiro e a ocul­tação da cor­rupção e que não fazem acordos. Esta é uma dis­tinção sem sen­tido, como tudo o que tem acon­te­cido de­monstra à sa­ci­e­dade, mas tem sido um ar­gu­mento para não os eli­minar! Eles são parte in­te­grante de um sis­tema onde essas di­fe­renças são ra­sadas pela sua ló­gica im­pla­cável! A so­lução no ime­diato passa pela sua ex­tinção, a par do fim da livre cir­cu­lação dos ca­pi­tais.

Não é de hoje, o ca­pi­ta­lismo sempre buscou, na re­dução do risco do ca­pital in­ves­tido e do «se­gredo que é a alma do ne­gócio» para di­fi­cultar a vida aos con­cor­rentes, a opa­ci­dade, a falta de trans­pa­rência, in­ven­tando a so­ci­e­dade anó­nima SARL e o si­gilo ban­cário. Os offshores/pa­raísos fis­cais são apenas a úl­tima cri­ação.

E também é bom que se diga que não houve um tempo «ético» do ca­pi­ta­lismo, em qual­quer das suas fases. Não foi ético o tempo da «acu­mu­lação pri­mi­tiva» com o saque do ouro e da prata e o trá­fico dos es­cravos. Não foi ético o tempo da Re­vo­lução In­dus­trial com os ho­rá­rios de sol a sol e a uti­li­zação de­sen­freada de mu­lheres e cri­anças. Não foi ético o tempo do sé­culo XX, onde as con­fron­ta­ções entre po­tên­cias ca­pi­ta­listas pelo do­mínio de ter­ri­tó­rios/​mer­cados e re­cursos mi­neiros e agrí­colas, de­sen­ca­de­aram a I e a II Grandes Guerras mun­diais. E todas as in­ter­ven­ções e agres­sões mi­li­tares que vi­eram a se­guir, até aos dias de hoje! E que hoje con­ti­nuam…

Falta uma re­fe­rência aos Pa­péis do Pa­namá e Por­tugal, o que fa­remos pro­xi­ma­mente.

1 Ac­tion Fran­çaise – mo­vi­mento de ex­trema-di­reita, dos pri­meiros anos do sé­culo XX, que de­fendia o na­ci­o­na­lismo e o in­te­gra­lismo. Charles Maurras, seu fun­dador, con­de­nava a de­mo­cracia e a Re­vo­lução Fran­cesa, era ca­tó­lico, mo­nár­quico, xe­nó­fobo e an­tis­se­mita. A sua pa­lavra de ordem «La po­li­tique d`abord» («a po­lí­tica pri­meiro») queria dizer «po­lí­tica re­li­giosa (ca­tó­lica) em pri­meiro lugar» e não a ma­ni­pu­lação de HM: «(…)po­lí­tica pura a mandar nos ca­pi­ta­listas»! Foi também um ins­pi­rador, con­fes­sado, de Sa­lazar!

 

ICIJ, dois mis­té­rios a in­ves­tigar…

A di­vul­gação pelo ICIJ (In­ter­na­ti­onal Con­sor­tium of In­ves­ti­ga­tive Jour­na­lists) dos Pa­péis do Pa­namá, tem pelo menos dois «mis­té­rios», que ne­ces­sitam de in­ves­ti­gação…jor­na­lís­tica. Nada que ponha em causa a im­por­tância do seu co­nhe­ci­mento pú­blico e uni­versal. Mas algo ne­ces­sário para se per­ceber me­lhor o con­texto «ge­o­po­lí­tico» deste es­cân­dalo.

O pri­meiro grande mis­tério, ano­tado por vá­rios media, é a au­sência de nomes de ci­da­dãos e em­presas dos EUA. Ha­vendo, ao que se sabe, na Mos­sack Fon­seca pelo menos 400 cli­entes dos EUA, 3072 em­presas dos EUA, 211 «be­ne­fi­ciá­rios» dos EUA e 3467 «Based share hol­ders» dos EUA, por que é que no pa­cote de do­cu­mentos en­tre­gues ao jornal alemão Süd­deutsch Zei­tung, nada há de con­creto li­gado aos EUA?

Isto é, es­tamos pe­rante uma clara fil­tragem, se­lecção, ma­ni­pu­lação de in­for­mação, aliás ma­ni­fes­ta­mente bem di­ri­gida a al­guns «amigos» dos EUA. A pre­sença de um 1.º mi­nistro is­landês, de um Ber­lus­coni, mesmo ao de leve de um Ca­meron e um Macri, só cre­di­bi­liza. Já dizia o nosso An­tónio Aleixo que «Para a men­tira ser se­gura e atingir pro­fun­di­dade/ Tem que trazer à mis­tura qual­quer coisa de ver­dade»!

O outro grande mis­tério é a razão do si­lêncio da ge­ne­ra­li­dade dos media (em Por­tugal a ex­cepção, que se saiba, é o Jornal de Ne­gó­cios) no es­cla­re­ci­mento dos mais que sus­peitos par­ceiros fi­nan­ceiros e ins­ti­tu­ci­o­nais do Con­sórcio Jor­na­lís­tico. Ora o ICIJ foi fun­dado e é apoiado pela Fun­dação Ford, a Fun­dação Car­negie, a Fun­dação Rock­feller, a Fun­dação WK Kellog, a Fun­dação por uma So­ci­e­dade Aberta (li­gado ao co­nhe­cido es­pe­cu­lador Ge­orges Soros), Fun­dação Wa­terloo (se­diada no Reino Unido), Fun­dação Fritt Ord (No­ruega) e ou­tras fun­da­ções e grupos eco­nó­micos dos EUA e RU. A ICIJ faz também parte da OCCRP (Pro­jecto Re­la­tório sobre o Crime Or­ga­ni­zado e a Cor­rupção) fi­nan­ciada pelo go­verno dos EUA, através da US AID – um or­ça­mento de 40 mi­lhões de dó­lares anuais para ajuda «a or­ga­ni­za­ções de media e blog­gers em mais de 12 países», res­pon­sável pelo su­porte às cha­madas «re­vo­lu­ções co­lo­ridas» no Norte de África e Médio Ori­ente, e ou­tras re­giões.

É no­tável que para lá dos en­co­miás­ticos elo­gios ao «jor­na­lismo de in­ves­ti­gação» não se tenha re­por­tado e su­bli­nhado a par­ci­a­li­dade, dis­torção e ocul­tação pre­sente na in­for­mação dis­po­ni­bi­li­zada. Aliás é ex­tra­or­di­nário que se chame «in­ves­ti­gação» à di­vul­gação, sem qual­quer alerta de pre­caução, de um pa­cote de in­for­mação, por muito grande e im­por­tante que seja, de­po­si­tado por um anó­nimo John Doe junto de um jornal alemão po­li­ti­ca­mente de di­reita e pró-NATO! Sem haver as na­tu­rais in­ter­ro­ga­ções: quem or­ga­nizou a Leak/​Fuga? Quem geriu e fil­trou a Leak/​Fuga? Os jor­na­listas do ICIJ co­lo­caram al­guma in­ter­ro­gação ética ou de de­on­to­logia pro­fis­si­onal ao acei­tarem tra­ba­lhar com do­cu­mentos «rou­bados» e se­le­ci­o­nados de avanço, sem terem a menor pos­si­bi­li­dade de con­ferir a sua au­ten­ti­ci­dade? Ou pelo menos as­si­na­laram de­vi­da­mente essas ca­rac­te­rís­ticas na in­for­mação que dis­po­ni­bi­li­zaram nos seus ór­gãos de co­mu­ni­cação?

Con­ju­gando todos os dados deste pro­cesso (e ou­tros an­te­ce­dentes do ICIJ) não é di­fícil con­cluirmos que es­tamos pe­rante a mão do go­verno norte-ame­ri­cano, via CIA. E por «boas ra­zões» para os EUA. A razão da «guerra» contra lí­deres e países ob­jecto dos seus pro­jectos im­pe­ri­a­listas.

E uma razão mais co­me­zinha, mas não menos cru­cial, para pros­se­guir um con­junto de ope­ra­ções pela hi­e­rar­qui­zação dos pa­raísos fis­cais, as­se­gu­rando os pri­meiros lu­gares no ran­king aos anglo-sa­xó­nicos, com os norte-ame­ri­canos em 1.º lugar! Isto sig­ni­fica des­viar fundos de ou­tros pa­raísos fis­cais e atrair ca­pi­tais, pro­cu­rando as­se­gurar o con­trolo e co­mando dos mer­cados fi­nan­ceiros.

Não sem razão há quem as­si­nale que cons­ti­tuiu a «Pri­meira ope­ração in­ter­na­ci­onal de en­ver­ga­dura da ad­mi­nis­tração de Obama, a Ci­meira do G20 em Lon­dres (02A­BR2009) vi­rada para a con­sa­gração da do­mi­nação global da fi­nança anglo-sa­xó­nica».