Nos catres da Rua do Heroísmo

Jacarandá, de Francisco Duarte Mangas

Domingos Lobo

Jacarandá, espécie exótica, é árvore pouco comum na paisagem do burgo portuense, como o será no geral do País. Árvore, como as palmeiras, das nossas errâncias de medir o tamanho do mundo e o nosso peso nele. Nostálgicos sinais das lonjuras perdidas.

Jacarandá é título de livro, estranho e entranhado título para um livro elaborado página a página como quem a terra dura lavra, sobre memórias feridas de um tempo de temores e sombras; livro vindo, rumor e febre, das colheitas do medo, dos dias aziagos, ungido sobre os ossos de um tempo de pesadelos e assombros, de palavras mudas ou percutidas em signos de tribo nas paredes nuas, nos húmus dos cárceres.

A palavra serena, o peculiar acervo linguístico de Francisco Duarte Mangas, poeta de planuras, serras e caminhos áridos, de transumâncias, de espécies cinegéticas e animais limpos, a perscrutar o sentido histórico, na matéria ardente deste romance, de um tempo de chuvas e de más colheitas. De crimes e de embustes. De traições. De medos estribando-se nos ramos de um Jacarandá metafórico, que prolonga e suspende, através dos mecanismos ficcionais, a realidade dos dias agrestes dos finais dos anos 1930, num Porto tolhido de medos e de impudência.

Jacarandá avistado, nos desvarios do medo, através de exígua gelosia nas masmorras geladas da PVDE da Rua do Heroísmo. Ramos de serenidade e luz representando a magia de um mundo outro, mundo de ventos e vozes, de largos espaços, da mudança cíclica das estações, da vida crescendo como todas as flores do mundo nos seus sinais perenes – vozes, risos, abraços, um beijo breve.

Noite aqui, diz o preso, sempre, dia é lá fora, onde o sol alumia e aquece as manhãs azuis da liberdade quotidianamente inventada. Como os signos inscritos nas folhas do jacarandá ondulando ao vento.

Uma cela húmida de bolores e febres, de um tempo estrumado ao avesso dos lumes, e nela um homem, pés doridos das noites de estátua, trambolhos que já não cabem nos sapatos velhos de tanto caminho andando, tanta senha e contra-senha decorada nas tarefas de vencer a noite, os temores do escuro e a cegueira; uma cela num subterrâneo sinistro. Tempo de medos e dos mecanismos que o inventam e percutem; um jacarandá imaginado para além do verosímil, como a bicicleta de Luís Veiga Leitão a iludir de fuga os dias do terror: Tu disseste: olha o jacarandá florido, fica rente à felicidade.

Porto, anos trinta, ainda os rumores da Guerra Civil de Espanha a despertar de vigília os olhos das esquinas; passeiam-se pelas ruas, colados à caliça, às rugas do granito, sombras de fantasmas serão, de tão esquivas e assustadas, clandestinos rojos, ou apenas homens sem chão, apátridas nos tumultos das baionetas dos lusos Viriatos e dos mouros franquistas; um punhado que resiste ao sufoco, que busca o ar lavado dos espaços da dignidade; uns e outros sabendo que nos subterrâneos da opressão as moscas crescem na imundície, sujam o silêncio. Todos a tentar fugir à tortura da Casa del Campo, lugar de rituais de iniciação, métodos de tortura herdados da Idade Média e das labaredas inquisidoras, bons tempos, pensa o inspector-chefe António de Faria, com sórdida placidez dos predadores compulsivos; métodos de antanho remoçados pelos pressurosos ensinamentos das SS e outros comparsas da mesma fornada.

Ecoam pelas redacções dos jornais, rumores de crimes vários, principalmente de um, pelo insólito, inexplicável, inaudito, o da Rua de Bonjardim. Crime que o inspector da PVDE, António de Faria, com a conivência matreira das gazetas, tenta atribuir a «grupos de malfeitores», aos comunistas e a refugiados rojos, enquanto vai deglutindo postas de pescada frita, pescada de Vila do Conde e só essa, tratando os empregados por serviçais no jeito de desprezo e humilhação que os serventuários do regime, arvorando poses feudais, gostavam de exibir perante os subalternos.

Jacarandá fala-nos de um Porto secreto, da soturnidade sinistra dos corredores do medo, de celas subterrâneas onde o bolor das pedras e das palavras sem eco habitam, de um tempo de fugas e traições, de quem, de tão vergastado pelo absurdo, pelas dores na carne, pelas sevícias sem nome exercidas sobre frágil corpo, a deslassar por dentro, se deixa tolher de estupefacção. Amor e fuga. Crónica modelar magnificamente contada por Francisco Duarte Mangas, de um rachado, de quem não teve, como João Magro e tantos outros, capacidade de ir para além da dor, de estar preso por fora, e livre em mim. Crónica de um tempo de algozes e de rasteiras cumplicidades, de predadores viciados nos jogos da insídia e do logro. Caça ao homem, não ao homem vulgar, aos que temem os rugidos do vento, mas ao homem que pensa, age e se inquieta. Insuportável perigo o de pensar, sobretudo quando se pensa à margem das regras impostas pelos manuais dos inquisidores e da usura que os move.

Quantos homens perdidos nos labirintos escusos e húmidos das celas da Rua do Heroísmo – e lembro aqui o depoimento de José Perafita, que o poeta Papiniano Carlos nos legou em A Memória Com Passaporte –, com o olhar febril, magoado, o sangue derramado pelas práticas dos torturadores, julgaram ver, na dorida alucinação que sobreleva os dias e noites de estátua, um jacarandá a florir, mágica visão seria de outros espaços, outras fronteiras da honra, para lá dos muros da prisão? A quantos, sobressaltados de temor, surgiu, em exígua janela de clausura, um jacarandá a florir, essa árvore exótica de outras lonjuras, espaços de sol e liberdade.

Jacarandá, árvore de vertigens, espantar os medos, modo de sonhar a liberdade, de respirar, de imaginar de árvore/uma asa1. É isso, uma asa a tocar o céu dos limites, da fuga sonhada e improvável: eu vi: na parede ao fundo/as árvores voam e/poisavam na leveza dos pássaros.2

Tempos bárbaros estes sobre os quais se debruça a língua de Francisco Duarte Mangas, língua cerzida a pulso neste livro maduro, extremo e enxuto. Ainda nele adivinhamos a prosa de Aquilino e Torga, esse rumor acre dos espaços da transumância, de Carlos de Oliveira, no dizer de Manuel Gusmão, dado que somos todos ladrões que roubamos a ladrões (Manuel António Pina); mas esta fala é já outra e transformada, atrela-se a uma indiscutível identidade, personaliza-se, é distinta no substantivo poético que a enforma, nos tempos e nos modos de dizer a tirania dos dias ignaros.

A escrita de Jacarandá, este sáfaro, belíssimo romance de Francisco Duarte Mangas, ao percorrer um dos períodos de maior baixeza moral da nossa história recente, ilidindo nesse fluxo histórico a essência, numa visão justa, conceptual e esteticamente inovadora, transporta-nos para os territórios fermentes da sedução, através do exacto acervo das palavras com memória, devolvendo-nos os lanhos, o estupor de um tempo e, dele, a dignidade ainda ferida dos seus clamores e infâmias. Nessa técnica modelar reside o seu segredo e a sua singularidade: a exímia fórmula de juntar o rigor poético a uma exemplar arte narrativa.

 
1Verso do poema IV de “Infância”,
do livro A Fome Apátrida das Aves,
de F. D. Mangas – Ed.
2Modode Ler.

idem

Jacarandá, de Francisco Duarte Mangas
Edição Teodolito

 



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