Os fornecedores de certezas
Barak Obama chegava a Cuba quase no mesmo momento em que, a muitos milhares de quilómetros de distância, terminava um certo jogo de futebol, e a cobertura televisiva dos dois acontecimentos estava de tal modo integrada ao longo do noticiário que o telespectador distraído quase podia crer que o avião presidencial norte-americano aterrara no estádio do Bessa ou que Jonas tinha sido a figura central do acolhimento cubano ao presidente dos Estados Unidos. É claro que admitir essa eventual confusão é apenas traçar uma caricatura com o exagero que qualquer caricatura sempre implica, mas nessa qualidade talvez sirva um pouco para apontar a falta de higiene informativa, digamos assim, que muito se infiltra nos telenoticiários que são postos em nossas casas e, o que é mais grave e tem mais consequências, nas nossas cabeças. É óbvio que a importância deste tratamento simultâneo do que se passava em Havana e no Bessa foi verdadeiramente miniatural: é suposto ser óbvio para toda a gente que a chegada de Obama a solo cubano é mais relevante à escala mundial que o golo de Jonas. Infelizmente, porém, são enormemente diferentes as consequências de outras confusões, de outros enganos, de outras mistificações, e na semana que naquele domingo terminava tornara-se dramaticamente evidente que o poder da chamada informação, de facto metamorfoseada em falsificação, tinha poder bastante para desencadear acontecimentos de importância fundamental no quadro da vida dos povos e do permanente combate que o marxismo designa, e bem, por luta de classes. A lição viera do Brasil, lugar que por razões bem conhecidas muitos de nós sentem como especialmente próximo, tanto e de tal modo que ainda hoje muitos portugueses recordam os sinistros anos em que os brasileiros suportaram uma ditadura militar torcionária, criminosa, infame.
De onde vieram eles?
No Brasil chamam-lhes mídia, obedecendo ao som da palavra media quando pronunciada no Norte do continente americano; por cá é quase sempre usada uma designação menos sintética, é a «comunicação social». De qualquer modo, porém, essas diferenças de nomenclatura importam pouco ou nada para o que hoje aqui as traz: é dos «mídia» brasileiros que importa falar porque são eles que são apontados, até na comunicação social portuguesa, como interventores de primeiríssima importância no actual momento político que se vive no Brasil, momento já dramático e com factores que podem torná-lo trágico. A questão é simples, trata-se da ofensiva desencadeada pelos sectores mais direitistas da vida política brasileira, de facto próximos dos que em 64 apoiaram o golpe militar, para derrubarem o poder legítimo, resultante do voto do povo em eleições em que, note-se, os estados mais ricos votaram maioritariamente à direita enquanto os estados mais pobres deram o seu voto a uma esquerda moderadíssima, de facto cooperante com os poderes financeiros mas ainda assim detestada pelo criptofascismo larvar que no Brasil nunca se extinguiu. Desta vez e por enquanto, os protagonistas da ofensiva não são os militares mas sim os juízes, pelo menos alguns deles alcandorados em lugares decisivos, e talvez seja oportuno perguntarmo-nos de que camadas sociais emergiram eles, de que classes provêm, parecendo óbvio que não vieram das favelas, nem das minas, nem do Nordeste devastado pelas secas. Porém, o que mais importa é sublinhar que a acção dessa gente tem vindo a ter como decisivo apoio a acção dos mídia brasileiros, órgãos não assumidos dos poderes financeiros, suas extensões e seus anexos. Ao longo de anos, têm vindo a injectar «certezas» nas cabeças brasileiras, a convencê-las de que o que designam por «esquerda» é a protagonista da corrupção que campeia pelo país. Quem puder e quiser, lembrará que o suposto combate à corrupção, obviamente desejável quando efectivo, tem sido muitas vezes o pretexto para golpes fascistas ou fascizantes um pouco por todo o mundo. No Brasil, essa sementeira tem sido intensamente feita pela TV e pela imprensa, ambas nas sábias mãos da direita como aliás é costume. Compreendamo-lo. Porque compreender é saudável.