Um regresso, agora

Correia da Fonseca

Há pouco menos de um ano, foi aqui registada a inclusão na programação do Fox Crime, canal distribuído por cabo, da série «Os Americanos» («The Americans»). Com então se referiu, o Fox Crime é um canal com boa audiência entre nós, aliás por justificados motivos: embora de mistura com produtos de menor mérito, transmite regularmente excelentes adaptações à TV de estórias em tempos escritas pela também excelente Agatha Christie, todos os episódios sendo marcados pela qualidade que em tempos foi característica das teleproduções britânicas e que infelizmente talvez tenha entrado um pouco em desuso. A questão, porém, é que «The Americans», cuja acção se situava nos passados anos de Reagan e cujo autor é um ex-funcionário da CIA, era claramente modelada como uma peça da artilharia propagandística dos anos da Guerra Fria e aparecia nos ecrãs dos nossos televisores numa altura em que a tensão em torno da Ucrânia estava na moda. Não será necessário narrar aqui, ainda que sumariamente, o entrecho da série, bastará referir que se tratava da infiltração nos Estados Unidos de agentes do KGB, obviamente feios, porcos e maus (ainda quando a fealdade é apenas moral e política), pelo que naturalmente tendia a injectar nos telespectadores um significativo reforço da aversão a tudo quanto vem da Rússia ou da ex-URSS, sendo certo que para muito boa gente não há diferença de conteúdos relativamente a estas duas designações oficiais: russos são sempre comunistas ainda quando neguem sê-lo e essa convicção é mais que bastante para os consumos correntes. Com o noticiário da vida internacional então muito focado sobre a Ucrânia, a série tendia a revigorar muito oportunamente a perigosa mistura de aversão e medo, temperada com molho de distorções e calúnias q.b., que havia sido durante décadas a ementa mediática «made in USA».

O dever da eficácia

Acontece que está agora anunciada a vinda para o Fox Crime de uma terceira série de «The Americans», o que justificará este olhar retrospectivo para uma crónica publicada há um ano. Entender-se-á decerto que o registo da próxima presença dessa série nos ecrãs portugueses num momento em que tensões políticas em torno do caso Síria ameaçam subir parece ser adequado e corresponde a mais um passo no cumprimento de um dever que sobretudo incumbe a quem se aplica, melhor ou pior, a fazer o que geralmente é aceite como crítica de televisão centrada não tanto sobre os aspectos formais quanto sobre os conteúdos transmitidos. Por uma decisiva razão que decerto não é segredo para ninguém que sobre a questão queira refletir sequer um poucochinho: porque a TV, mais intensa e eficazmente que qualquer outro meio de comunicação social, condiciona e molda o entendimento que os cidadãos têm do mundo e da vida. O mesmo é dizer que a televisão é factor decisivo para a consciência cidadã, e que por isso é fundamental que a crítica de TV que na verdade o queira ser, ultrapassando a condição de mero simulacro ou arremedo, não se esqueça nunca desse primeiríssimo factor. Aliás, este aspecto inclui-se na necessidade de permanente mobilização contra os tóxicos diariamente injectados na comunicação social, mas também nos cuidados a ter com a qualidade e a eficiência da comunicação que tenta repor verdades generalizadamente «proibidas». Como bem se entende, essa eficácia há-de ser uma primeiríssima preocupação dos comunistas que têm maior ou menor oportunidade de intervir na comunicação social, como aliás já há anos sublinhou um camarada de quem todos nós decerto temos saudades e cujas recomendações não podem ser esquecidas. Neste quadro, entende-se como seria inútil, ou pelo menos de viabilidade difícil, uma genuína crítica de TV que se visse embaraçada no seu percurso. O que, já se vê, não acontece em certos refúgios cada vez mais raros onde ela subsiste. Como estas duas colunas.




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