O pão da cultura
Um homem com fome não reconhece a forma abstracta do pão, escreveu Marx, nos Manuscritos da Juventude. Como poderá um homem com fome reconhecer a forma, o sabor, as texturas, o quase milagre que é a invenção do pão, se vê o pão como combustível para a sua sobrevivência? Fica desde logo solidamente ligada qualquer política cultural a políticas económico-sociais que assegurem mais que o limiar da vida. A pobreza é devastadora para vida cultural.
Igualmente devastadora para a cultura é o desconhecimento, a ignorância. Quem nunca ouviu Bach, leu Camilo, viu um filme de Visconti ou uma peça de teatro de Pinter, os citados são aleatórios, como poderá gostar deles, apreciá-los, a eles e aos outros? Integrá-los na sua vida? Fazer que com eles os seus sentidos, não só os físicos como o ver e o ouvir, mas os humanos, como a vontade ou o amor, se apurem, sofistiquem, integrados no seu quotidiano? Torna-se assim a cultura dependente dos sistemas educativos e comunicacionais em relação às artes, e a cultura está longe de se reduzir às artes. Cultura é, provavelmente, uma das mais complexas palavras de qualquer língua, com uma raiz que significando uma actividade é também uma entidade.
Originalmente descrevia um concreto processo material de trabalho que o homem introduziu no crescimento espontâneo da natureza para a conformar às suas necessidades, alterando-a, dominando-a, inventando-a e inventando uma nova disciplina, a agricultura, que o foi agarrando à terra diversificando as culturas e desenhando novos habitats, desenvolvendo agregados populacionais e uma vida colectiva onde a cultura começou a ser metaforicamente transposta para os assuntos ditos do espírito.
As sementeiras passaram a ser materiais e imateriais tal como os seus frutos enquanto, paradoxalmente, os que adubam a terra para a tornar mais fértil, mais propícia a produzir culturas, começaram a ser considerados incultos por falta de tempo para se cultivarem, em contraponto com os citadinos progressivamente mais interessados na cultura e com mais tempo para produzirem cultura não só enquanto progresso da humanidade, mas como instrumento que marca distâncias e distinções.
O labirinto semântico da palavra cultura descreve sempre uma transição entre o que existe e o que se transforma, seja na natureza ou no espírito dos homens. Transição constante, variável entre regulação e crescimento espontâneo por força do trabalho que a diversifica e aprofunda. Cultura é ainda um instrumento de dominação da natureza e/ ou da humanidade numa sociedade que se apropria dos frutos do trabalho, de todos os frutos do trabalho, do mais banal cordel ao mais complexo poema, para deles fazer mercadorias. Apropriação que é trave mestra do sistema de produção capitalista que aprofunda o divórcio entre o homem e a natureza, o homem e seus semelhantes, entre o homem individual e a sua individualidade. Onde a alienação corta transversalmente toda a actividade humana.
Esta uma questão central de qualquer política cultural, sobretudo quando as políticas económicas neoliberais entregam às leis do mercado a produção de objectos culturais, integrando-os numa nova ordem económica, fanática e totalitária, que tem por objectivo último o domínio do mundo por megapólos financeiros, não sujeitos a nenhum controlo excepto o da lógica do investimento e do lucro. Anote-se como as artes são assim atiradas para o nicho do mercado dos objectos de luxo, se marcha para a privatização do património edificado e ambiental, como se restringem os estímulos à produção do cultural ao investimento directo ou indirecto, por empréstimos, subsídios e crowdfund. Nessa lógica inscreve-se a glorificação da cultura enquanto sector económico rentável, dizem eles, com peso crescente, quando se inventa uma denominação, Indústrias Culturais e Criativas, saco onde coexistem alegremente a produção de filmes como as 1001 Noites, 45 Dias ou a Casa dos Segredos e as Tardes de Júlia, filmes pornográficos e Jogos Vídeo, a Publicidade e as artes que não por acaso ignoram deliberadamente que o destino histórico dos formalismos termina sempre no trabalho publicitário sobre a forma. Os exemplos e a confusão multiplicam-se o que concorre para que a Cultura se torne numa sublime e suprema inutilidade.
Nesse contexto, definir políticas culturais implica a redemocratização da cultura, em linha com uma urgente e necessária redemocratização do Estado. Políticas culturais que tenham por eixo prioritário as massas populares como os seus destinatários principais, enquanto fruidores e receptores, dar visibilidade e extensão territorial às criações mesmo as mais minoritárias, estabelecer uma relação forte com a educação e as organizações não governamentais, reestruturar os departamentos culturais que as ponham em prática, apagar as agendas dos amigos e as tentações do exibicionismo do poder sobre a cultura. É urgente e necessário colocar a cultura como uma questão política e não uma actividade mercantil, como tem sucedido sobretudo nos últimos quatro anos.
A arte, como a ciência, a educação, qualquer outra actividade de transmissão de saber e de saber fazer tem custos. Qualquer política cultural do Estado é uma política de gestão de recursos financeiros. O horizonte a médio prazo, até ao fim da legislatura, para não se ser irrealista, é o traçado no Manifesto para a Cultura que reivindica e justamente que o valor a atribuir para a Cultura seja 1% do PIB. Não é um valor mítico. É um valor a exigir, uma meta que tem que ser alcançada. O risco é o pão da cultura endurecer.