Nos 35 anos da publicação
do Cancioneiro Popular Português (1981-2016)

Michel Giacometti<br>– longa militância pela cultura<br>e pela transformação da vida

António Modesto Navarro

A colectânea, há muito esgotada e nunca reeditada, pretende «restituir ao povo português o que lhe pertence de uma herança legítima, nem sempre avaliada justamente como um dos mais preciosos bens do património comum» (in Cancioneiro). A obra reúne 250 canções, rimas e jogos infantis transcritos dos registos sonoros de Michel Giacometti e de Lopes-Graça, mas também de um conjunto alargado de etnólogos portugueses e estrangeiros.

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Michel-Marie Giacometti, nascido na ilha mediterrânica da Córsega (França), veio para Portugal e, entre 1959 e 1990, recolheu, estudou e divulgou a música tradicional portuguesa. Em 1960, fundou os «Arquivos Sonoros Portugueses» e editou, com Fernando Lopes-Graça, uma discografia fundamental para o conhecimento do património musical do País. Foi um investigador decisivo da nossa etnologia e a sua obra cinematográfica e televisiva constitui também uma referência incontornável para conhecer o Portugal do século XX e reflectir sobre os percursos da nossa identidade nos dias de hoje. A filmografia completa, editada há poucos anos, em 12 volumes, inclui não só a série televisiva «Povo que Canta», produzida pela RTP e com realização de Alfredo Tropa, entre 1970 e 1974, dedicada à música e cultura de raiz tradicional portuguesa, como também outros dois filmes realizados por Michel Giacometti entre 1962 e 1963.

Michel Giacometti conheceu em França uma mulher portuguesa com quem iria casar e com quem veio para Portugal. Ele tinha encontrado, no Museu do Homem, em Paris, um livro decisivo para a sua vida pessoal e intelectual, «Folk Music and Poetry of Spain and Portugal», de Kurt Schindler, alemão radicado nos Estados Unidos da América, que, em 1929, visitara Espanha e em 1931 estivera no norte de Portugal, em Trás-os-Montes.

Foi na região transmontana que Michel iniciou a sua longa e extraordinária missão de etnólogo, de estudioso, de investigador e recolector das raízes culturais populares, dos cantos, das músicas, dos instrumentos musicais e de trabalho, da medicina popular, de tudo o que trouxesse ao de cima o que identificava e identifica um povo a perder-se na emigração e na guerra colonial do fascismo e, mais tarde, nessa desastrosa integração europeia que destruiu o trabalho, a nossa vida no interior e nas áreas metropolitanas, nas regiões desapossadas do essencial na agricultura, na indústria e nas pescas, dessa reforma agrária nos campos do Alentejo e do Ribatejo, a mais bela conquista da Revolução, destruída por mentecaptos e servidores dos agrários e do capitalismo.

Povo que canta não morrerá

Michel Giacometti veio de longe para se aliar ao maestro Fernando Lopes-Graça, que era o criador e erudito no apoio e trabalho conjunto, a João Honrado, também comunista, saído das cadeias do fascismo em 1972, que foi seu apoio companheiro em Lisboa e no Alentejo, antes e depois de Abril, a Manuel Jorge Veloso, intelectual comunista decisivo na RTP, em 1970, para que Filipe de Sousa, então responsável por uma área de programas, desse luz verde para a realização da série «Povo que Canta».

Alfredo Tropa, o realizador, Manuel Jorge Veloso, o responsável pela organização e trabalho no terreno, Francisco d’Orey e outros trabalhadores da cultura deram asas ao sonho para que, entre 1970 e 1974, essa série magnífica e verdadeira passasse na televisão, mostrando o essencial da nossa vida e identidade. Tudo isto aconteceu face à mistificação e à destruição operadas por um programa reaccionário apresentado por Pedro Homem de Mello, com ranchos folclóricos negativamente influenciados pelo fascismo, nas vestes, nas cantigas e nas músicas, desde logo pela introdução do acordeão, instrumento que nada tinha a ver com a tradição dos cantos e das músicas criadas pelo povo de cada aldeia, vila e lugares por onde Michel Giacometti andou e recolheu o essencial que nos dava força e gosto de sermos portugueses, apesar da fome e da miséria que encontrou por todo o lado.

Foram 37 filmes a preto e branco que realizaram e exibiram com o título «Povo que Canta», título que faz parte de um verso de um poeta e filósofo revolucionário, Jesús Lópes Pacheco, «Pueblo que canta no morirá».

Com os jovens das campanhas de alfabetização, depois da Revolução de 25 de Abril, criou o Plano Trabalho e Cultura, na recolha e estudo da nossa vida e identidade, no sentido de terem memória e experiência para construírem uma consciência política.

Trabalhou no Inatel, na sua reestruturação, dirigindo o Gabinete de Etnografia e Folclore, de onde saiu em 1978, doente com o que lhe fizeram. Escreveu, em parceria com Fernando Lopes-Graça, o «Cancioneiro Popular Português», editado em 1981 pelo Círculo de Leitores.

A colectânea, há muito esgotada e nunca reeditada, pretende «restituir ao povo português o que lhe pertence de uma herança legítima, nem sempre avaliada justamente como um dos mais preciosos bens do património comum» (in Cancioneiro). A obra reúne 250 canções, rimas e jogos infantis transcritos dos registos sonoros de Michel Giacometti e de Lopes-Graça, mas também de um conjunto alargado de etnólogos portugueses e estrangeiros.

Ao longo da sua vida em Portugal, Michel Giacometti esteve 95 meses na investigação no terreno, na recolha de mais de quatro mil repertórios musicais, de para cima de 50 mil fichas com informações e seis mil fotografias, para além de outros dados da vida social, económica, espiritual e política do povo português. Todo o nosso país foi seu território de pesquisa. Sabendo da importância da edição e da divulgação e entendendo o papel do cinema e da televisão, actuou como profissional e investigador e esteve ligado aos cineclubes.

Michel Giacometti, que em jovem passou por aventuras na Argélia, que viveu revoluções e conheceu Albert Camus, foi operário fabril no norte da Europa, intelectual, poeta, aluno na Sorbonne, e veio para Portugal por motivos familiares e de doença.

Ainda em Paris, em 1959, um médico aconselhou-o a procurar um clima mais propício à cura da tuberculose que acabara de contrair. Deixa Paris e vem para Lisboa, sem ideias de se fixar por cá, apesar de ter casado com uma portuguesa. Tem 30 anos e na memória traz esse livro encontrado no Museu do Homem, no qual o musicólogo Kurt Schindler descrevia, entusiasmado, uma passagem por aldeias de Trás-os-Montes. Ainda em convalescença, em Lisboa, decide ir conhecer aquela região.

Nunca mais parou, este andarilho nascido na Córsega, em 1929, criado por um tio funcionário na Rota do Império Francês, desde os confins argelinos, à porta do deserto, até às margens do Mediterrâneo. Raptado por uma tribo aos três anos, salvo por uma criada negra, Herratin (descendente de antigos escravos negros de árabes), vê os tios dormirem com uma espingarda à cabeceira, «à espera dos maus», na queda lenta do império. Os jogos de criança disputa-os em espanhol e árabe; chora ao ver um amigo árabe das brincadeiras de rua a cantar, de punho erguido, «A Internacional». A Frente Popular ganhara as eleições em França e o amigo (tinham ambos sete anos) explica-lhe: «Agora somos todos iguais.»

Luta pela cultura e pela identidade

Naqueles anos das suas viagens de Lisboa para todo o Portugal, em condições difíceis, com ou sem dinheiro, com um primeiro gravador e depois com um segundo gravador Nagra, que custou 40 contos e foi comprado pelo arquitecto e arqueólogo Gustavo Marques e emprestado para fazer melhor o seu trabalho, ele tinha mágoa de ver parte da intelectualidade portuguesa divorciada da realidade dos trabalhadores e do povo. Não era o caso de Fernando Lopes-Graça, que o levou a muitos encontros e culturas; ou de Alves Redol, que escrevera já «Glória, uma aldeia do Ribatejo», «Fanga», «Marés» e «Avieiros» e livros como os do ciclo do Vinho do Porto, de Soeiro Pereira Gomes, com «Engrenagem», «Esteiros» e «Contos Vermelhos», de Manuel da Fonseca com «Aldeia Nova», «Seara de Vento», «Cerromaior» e outros livros que são honra e orgulho de todos nós.

Mas havia intelectuais que seguiam a postura dominante do fascismo e do abandono do País real, o que Michel Giacometti criticava e enfrentava, partindo para as terras onde tinha amigos que o acarinhavam e apoiavam, nas suas pesquisas e recolha da cultura popular, como aconteceu sempre no Alentejo e também em Trás-os-Montes, terras da sua afeição e amizade, bem como nas Beiras e noutras regiões do País.

Conta ele, a certa altura das suas entrevistas e depoimentos, o que lhe aconteceu um dia, entre Miranda do Douro e Bragança, e diz, amargamente, que chegou a fazer prospecção sem nada na algibeira. Então, tinha de fazer uma deslocação de 10 Km, por caminhos cheios de neve, para ouvir uma pessoa, e que havia um casal de camponeses que tinha uma mula velha. «Emprestaram-ma», contava ele, «mas a mula parava no caminho, coitada. Desci dela, comecei a empurrá-la. A certa altura, a mula caiu na neve. Gosto muito de animais, pus a cabeça dela no meu colo, para lhe dar calor, ela estava a ficar fria. Fiquei sem transporte, no meio do caminho, frio e vento, com uma fome desgraçada, e eu sem saber o que haveria de dizer aos donos. “Vou fugir”, pensava. Voltei a casa deles. “Olhem, aconteceu uma desgraça, a mula morreu”. Estavam a fazer uma sopa de couves com batatas. “Deus leva o que lhe pertence”, disseram. Comi em silêncio; era terrível para eles a falta da mula e propus-lhes: “Agora não tenho dinheiro, mas, quando chegar a Lisboa, arranjo duzentos escudos. Quero compensar-vos”. Não aceitaram. “Deus leva o que lhe pertence…”».

Podemos assim imaginar o que foram anos e anos de trabalho, por entre situações de grande pobreza, que as pessoas a viverem nessas condições denunciavam para as gravações e filmagens, mas que eram cortadas pela censura e pelos censores da televisão e da rádio. Nos anos 1960/1970 saiu uma famosa colecção de discos com capas de serapilheira, a Antologia da Música Regional Portuguesa, discos que muito nos surpreenderam e deram consciência da ausência de apoios para conhecermos as canções e as músicas essenciais do cancioneiro das regiões e do País. As pessoas conscientes e interventivas quotizavam-se, formaram quase uma cooperativa e os discos foram editados, foram perseguidos e apreendidos pela PIDE em muitas casas e marcaram profundamente a nossa evolução musical e política. Evolução que iria afirmar-se na luta contra a guerra colonial que destruía milhares de jovens, nos combates contra a exploração, o custo de vida e a miséria, pela cultura integral do indivíduo que Bento de Jesus Caraça, Álvaro Cunhal, Soeiro Pereira Gomes, Fernando Lopes-Graça, Maria Lamas, Virgínia de Moura, Irene Lisboa, Matilde Rosa Araújo e tantos outros intelectuais defendiam e impulsionavam.

O trabalho pioneiro de Michel Giacometti, um português estrangeiro dos mais portugueses que conhecemos, ali estava, naquela casa da Rua dos Navegantes, em Cascais, em milhares de fichas, gravações, fotografias e outros materiais que ele organizava meticulosamente e com rigor, num exemplo que não era bem português, de exigência, dedicação e sacrifício.

Michel Giacometti e o PCP

Michel foi um construtor da democracia e da Revolução de Abril, desde logo estabelecendo contactos com intelectuais e trabalhadores empenhados nas lutas de libertação e afirmação da cultura e dos saberes populares. Pertenceu à Base socioprofissional da CDE – Comissões Democráticas Eleitorais, desde 1969, com Manuel Jorge Veloso, Celeste Amorim, que gravou a locução de «Povo que Canta», que o visitavam e com ele reuniam, entre outros militantes e cantores do Coro Lopes-Graça, da Academia de Amadores de Música. Foi militante comunista, com cartão que teve de ser publicado no Avante!, quando quiseram pôr em causa as suas opções pela revolução e pelo futuro do nosso povo.

Michel deveu ao investigador e grande estudioso da nossa vida e cultura Ernesto Veiga de Oliveira o acesso a uma lista de tamborileiros do Baixo Alentejo ou o conhecimento de Catarina Sargento, a voz impressionante dos cantares de Penha Garcia e da Beira Baixa, no caminho da construção de um arquivo primacial sonoro que fundou em 1960, responsável pela recolha, tratamento, depósito e edição de sons e da música regional portuguesa até à sua morte, em 1990.

Do seu saber e acerca do Maestro Lopes-Graça, Michel Giacometti disse: «Eu não sou um musicólogo, mas apenas um etnólogo. Por isso, às vezes preciso de ouvir meia centena de canções para descobrir uma que seja inteiramente original. A primeira selecção é feita por mim; a segunda é feita pelo maestro Lopes-Graça.»

Fernando Lopes-Graça organizou cerca de 200 canções, com arranjos à mão, para o Coro da Academia de Amadores de Música e para fruição de todos nós. Com Jorge Dias e Artur Santos, integrou a Comissão de Etnomusicologia da Fundação Calouste Gulbenkian. Temos muito que trabalhar para o trazer ao conhecimento de todos e para lhe fazer justiça.

Quando Michel Giacometti faleceu, no Hospital de Faro, pediu para avisarem quem ele queria que avisassem, para avisarem Octávio Pato, dirigente do PCP, dizendo que queria ficar sepultado no Alentejo, entre esse povo que amava e de quem se tornara irmão de sangue, de luta e de cultura. Ficou sepultado em Peroguarda, no concelho de Ferreira do Alentejo. 

Michel diria e diz, na sua obra e no seu exemplo, «precisamos de mudar de vez esta vida». Sim, precisamos de mudança a sério e nova, como também diria Manuel da Fonseca, esse alentejano tão amigo e criador do mundo do trabalho e da liberdade humana.

Ficámos mais livres e operativos com o seu trabalho, o seu exemplo cultural e cívico, como quis e quer Michel Giacometti, como quis e quer Fernando Lopes-Graça, como quiseram e querem os que lutaram e lutam pela nossa identidade, soberania e independência.




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