Violência doméstica, um combate da democracia
«Elas pagam a letra da moto ao que lhes bate. Elas não falam dessas coisas. Elas chamam de noite nomes que não vêm. Elas ficam absortas com a mola da roupa entre os dentes a olhar o gato sentado no telhado entre as sardinheiras. Elas queriam outra coisa».
Maria Velho da Costa, «Revolução e Mulheres»
A violência doméstica é um flagelo que persiste e assume nos dias de hoje novos contornos, particularmente graves num tempo de agudização de todas as desigualdades, de múltiplas formas de condicionamento da autonomia e independência económica, social e cultural das mulheres.
Ouvi dizer há meses no Porto, da boca de uma magistrada do Ministério Público, que as mulheres vítimas de violência quando vão à polícia, aos tribunais, vão quase sempre sozinhas. Tal é bem revelador da desprotecção das mulheres e da ineficácia dos serviços públicos de protecção das vítimas, sendo que tal necessidade extravasa em muito a dimensão policial e securitária, que embora determinante não exclui a dimensão psicológica, emocional, social.
O flagelo da violência doméstica, as suas causas e expressões múltiplas exigem uma análise estruturada e integrada, sob pena de qualquer discurso simplista resultar numa responsabilização directa ou indirecta das mulheres pelas múltiplas formas de violência de que são alvo.
O património de intervenção do PCP sobre estas matérias é muito vasto, e em larga medida pioneiro: em 1989 com a apresentação de iniciativa legislativa sobre protecção de mulheres vítimas de violência que estaria na origem das primeiras medidas legislativas específicas neste domínio.
Desde início apontámos a necessidade de um combate transversal aos fenómenos de violência sobre as mulheres, no qual o Estado tem obrigações específicas de prevenção do fenómeno, protecção e acompanhamento das vítimas, monitorização e erradicação de todas as formas de violência.
Não será por acaso. Acontece, porque partimos da identificação desta matéria como uma questão política e não uma questão privada de relação entre homens e mulheres. Por isso mesmo, avançámos com a necessidade de analisar e intervir sobre as causas do flagelo da violência sobre as mulheres.
O reconhecimento de que a violência sobre as mulheres «é uma questão política, como questão política é o problema geral de promoção da igualdade, sem a qual a democracia ficará inacabada»1 será um dos traços mais distintivos da análise do PCP sobre esta questão, pois integra a vitimização das mulheres no quadro mais geral do estatuto social da mulher. Daí olharmos para os direitos das mulheres como parte integrante do regime democrático, e entendermos que a degradação deste reforça obstáculos às condições de autonomia e emancipação das mulheres na família, no trabalho, na sociedade, na vida.
A violência doméstica é uma incontestável violação dos direitos humanos. Para algumas mulheres, são razões de ordem cultural que as impedem de romper com o ciclo de violência a que estão sujeitas no seio da família. Para outras, a grande maioria, acrescem barreiras económicas e sociais e a falta de alternativas para (re)começar uma nova vida, porque à violência doméstica, acresce, tantas vezes, a violência exercida pelo Estado que promove o desemprego, a precariedade laboral, os baixos salários e discriminações salariais. Nas situações de violência doméstica existem situações associadas ao alcoolismo, à toxicodependência e a outros factores psicossociais, que reforçam a complexidade do flagelo e impõem necessariamente uma articulação com diversos serviços públicos de segurança social, saúde, ensino.
Contudo, se hoje existe consenso generalizado em considerar a violência doméstica como inaceitável, tal não existe quanto à garantia dos mecanismos para a combater e erradicar. Os sucessivos governos demitiram-se nas medidas de prevenção das causas da violência doméstica, que conjuga factores culturais e de ordem económica e social.
O combate pela erradicação da violência doméstica e de todas as formas de violência sobre as mulheres exige medidas específicas, mas é parte de uma luta maior pelo progresso e justiça social, onde a igualdade exista na lei e na vida. Vamos a isso!
1 Diário da Assembleia da República, I Série, n.º 52